Podia ter sido a nossa música


– Achei que você nunca fosse pedir. Como vão as coisas?

– Vão mal. Eu devo viajar no mês que vem e não queria te deixar aqui sozinha. Ainda mais quando você fica extremamente bonita enquanto eu te conduzo. Dá vontade de ficar te girando por uma noite inteira enquanto essa música vai dando ritmo pra gente.

– Você acha realmente que a gente tem ritmo? Eu digo…não sei se os seus passos casam com os meus. Eu sou mais agitada que isso. Você é clássico demais. Narcisista demais, até. Achou que eu não percebi a sua tentativa de conquistar as outras mulheres do salão enquanto me conduz? Você é um desses bonitinhos adoráveis que a gente manteria por perto pra sempre. Mas é um baita dum pretensioso.

– O que te faz pensar que eu não tento te seduzir? Meus olhos estão fixos nos seus…

– Mas o seu olhar é periférico. Você olha pra mim e pra todas. É como se o seu mundo fosse mais amplo do que você costuma mostrar. E eu sei que é intencional. Dobra a perna. Isso, agora me passa por baixo do braço. Tá vendo aquela mulher de rosa por trás do meu ombro esquerdo? Ela reparou que você mexeu no meu brinco e sorriu. E se eu girar assim, do nada…

– Opa, calma lá.

– Me acompanha. Ou você tem medo de arriscar a dança e perder o passo? Homens são sempre feitos de manuais. Se eu desvio, você se perde. Se eu conduzo, você se fragiliza. Acho que você devia aprender a lidar com imprevistos.

– E você é muito mais inteligente do que eu pensei que fosse. Deixa as senhorinhas e as meninas pra lá. Você ganhou a minha atenção por essa noite. Como em todas as outras.

– Como é que eu vou fazer quando essa música acabar?

– Você só se lembra da letra enquanto toca a música? Você entrou no jogo e aprendeu a jogar. Te devo algum respeito e não consigo negar que você é bem interessante. Já pode devolver as chaves do meu apartamento se quiser.

– Não devolvo. Ele é meu até quando eu quiser. Aliás, essa podia ser a nossa música. Pra você se lembrar de mim sempre que estiver dançando com elas. Elas vêm, você conduz. Elas vão, você se lembra de mim. Simples e doloroso assim. Será que você vai sentir saudades?

– Cara ou coroa? Se você ganhar, eu confesso a verdade. Ou eu posso sussurrar baixinho assim… Na ponta do seu ouvido. Quer ouvir a verdade ou prefere que eu pare de chegar mais perto?

– Continua. Eu dobro a aposta se você conseguir me manter interessada até a música acabar. Mas já disse… Essa podia ser a nossa música. Pra você lembrar da cor do meu vestido e, quem sabe, da cor dos meus olhos depois. Pra você lembrar de cor do sexo e da textura das minhas pernas. Pra você lembrar do meu quarto e da silhueta do meu corpo. Mesmo que eu saiba que você só vai se lembrar da minha bunda e de algumas poucas palavras no fim de tudo.

– Você me subestima. E eu vou sentir saudades. Giro a perna ou paro de olhar nos seus olhos? Assim, vem pra esquerda. Vou te levantar na virada do refrão. Isso…  Se eu dissesse que você é uma daquelas mulheres para se lembrar, você acreditaria em mim?

– E por que não acreditar? Você se lembra de mim desde o dia em que me viu. Eu sou aquela promessa maluca de mudar o seu mundo em meia hora. Mas esse seu chapéu não combina nem com a promessa, nem com o tempo lá fora. Ele é igual a todos e igual a nenhum. Tem a cor padrão, mas pertence a você. Será que você vai mudar a minha história?

– Essa poderia ser a nossa música. Se eu conseguisse te conquistar, certamente ela seria. E o seu vestido é da cor dos seus olhos. É por isso que eu vou lembrar enquanto estiver longe. Você podia me dizer o seu nome e talvez eu te dissesse o meu. Já não somos desconhecidos desde que você me decifrou. Sou um canalha para todas as outras, mas me bateu vontade de ficar. E prometo não dar o nome falso dessa vez. Por que parou?

– Podia ter sido a nossa música. Podia ter sido você. Mas você demorou demais. Nem que sim, nem que não. Se você conseguisse me conquistar, a gente teria se lembrado dessa dança e desse momento. Mas agora a música acabou e eu já não sei se foram dois ou três pulos, cinco ou seis giros. Essas coisas são efêmeras demais, rapaz. E realmente podia ter sido a nossa música e eu podia ter te amado pra sempre. Mas você não quis.

– Se você disser seu nome, eu posso te conquistar nessa nova música e nessa nova dança. E essa pode ser a nossa música, a nossa história e o nosso minuto eternizado. Vai me dizer que não gostou de ser conduzida por mim?

– Foi quase bom, mas você perdeu o momento. Da próxima vez, tente com um pouco mais de carinho. Mas a música de agora é boa. Talvez ela seja sua e de mais alguém. Ela só não é a nossa música.

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