Família é algo complicado demais. Acho que aprendi isso na época que papai e mamãe tiveram o seu primeiro grande desentendimento e ameaçaram se separar. É devastador uma sala de estar que só emite o som da televisão. Pior ainda é uma mesa de almoço, jantar e mágoas que vive cheia do nhoc nhoc dos nossos dentes que não deixam escapar uma única palavra. Era evidente que as coisas estavam desmoronando e eu, com menos de duas décadas de idade, não tinha a menor ideia do que isso significava.
Quando a gente é criança e pensa em separação dos pais, as coisas não são lá muito trágicas. Eu iria morar com mamãe, facilmente. Minha mãe sempre foi muito parecida comigo: louca e carente de uma maneira sem igual. Um ótimo gosto pra moda e comida e um coração meio mole demais (que eu nunca tive). Ela me chamava de egoísta na época e parece que tomou apreço pelo adjetivo. Diz que não sabe a quem puxei com essa mania de deixar tudo entrar num ouvido e sair no outro sem me abalar com a novela mexicana da vida de alguém. Papai era meio durão e meio piadista. Acordava sempre com aquele humor de domingo e chegava sempre do trabalho com aquela cara de segunda-feira. Ele tinha uma determinação que nunca vi em presidente algum. Se pudesse mudar o mundo, ele mudaria. E tenho certeza de que não só eu, mas todos os meus amigos e desconhecidos achariam o mundo um lugar melhor.
Eu só pensava em ter duas casas, dois quartos, ser mais mimado e disputado pelos meus pais. E o meu irmão com certeza ficaria em outra casa que não a minha. Irmão mais novo é sempre um pentelho. Acha que tem a nossa idade, quer tomar posse dos nossos amigos e seguir a gente feito GPS localizador pra todas as festinhas badaladas. O meu irmão não ficava atrás nessa generalização não. Apesar disso, a gente se dava muito bem nos intervalos de tempo entre as brigas e discussões. Era a vida que eu queria, mas sem aquele silêncio constrangedor de todos os dias. Papai e mamãe mal se olhavam e quando iam me dar um beijo de boa noite, eu conseguia ouvir a porta se fechando e cada um indo dormir num lugar da casa. Até que um dia desses, papai disse que amava mamãe e ela não respondeu. Foi o fim pra mim.
A minha criação nunca permitiu essa coisa de não corresponder sentimentos se eles fossem verdadeiros. Eu não entendia essa etiqueta dos adultos de ignorar solenemente uma vida inteira por conta de alguma mágoa. Hoje em dia eu até entendo isso: um único peso pode destruir todas as medidas que foram construídas por uma vida. E papai e mamãe sentiam aquele peso. Papai tinha cara de arrependimento e olhos de panda. Mamãe tinha cara de desolação e lágrimas nos olhos. As minhas aulas de ética e religião na escola me pediam pra não enfiar Deus no meio de tudo isso. Mas eu era uma criança descobrindo o mundo – com meus pais descobrindo o ódio e todas essas palavras que existem num relacionamento. Então eu rezava. Toda noite eu rezava pra não ter que escolher entre uma casa e uma despedida. As minhas boas maneiras não foram criadas no silêncio da casa. Eu sempre fui repreendido por fazer barulho nas horas erradas e por falar alto demais na mesa. E eu repreendia meus pais pelo contrário. O silêncio fere o amor.
Chegou num nível em que fazer algum tipo de barulho era como uma súplica para não morrer em meio a esse deserto de palavras. Papai saiu de casa no dia do meu aniversário. Me deu de presente uma mala – para carregar as coisas pro meu quarto novo, disse ele. Mamãe me deu um escapulário e me pediu para não perder fé na humanidade. E eu vi se formarem dois polos na minha frente: norte e sul. E a distância entre eles era tão grande que eu não sabia o que fazer para não perdê-los de vista. Papai me disse que meu irmão moraria com mamãe e que eu moraria com ele. Mas eu não escolhi assim. Não pedi para morar com papai. Eu nunca quis ter que escolher entre os dois de verdade.
Papai pegou minha mala e esperou na porta de casa. Mamãe benzeu o escapulário e me deu um beijo na testa. E os dois se despediram com um adeus mal dado. E quando eles finalmente ganharam voz, eu me silenciei.