Eu queria te dizer que ontem me lembrei do dia em que eu te conheci e que, porra, teve nada de especial naquele dia. Queria te dizer que eu quase pensei em cancelar o encontro depois de trinta minutos de papo sobre a sua faculdade e o seu trabalho e as suas férias e não foi sempre assim? Sempre foi sobre você falar sobre você e eu ficava em segundo plano escutando tudo. Dizem que o amor é um bom ouvinte, mas amor nenhum é mudo, meu bem. Quando eu ia falar alguma coisa, você falou por mim que já tinha dado de falar sobre você, pediu desculpas e me fez ver seu lado bom do outro lado da Terra.
Eu queria te dizer que eu ainda sinto muito e que me culpo muito também por sentir. Na minha cabeça, eu repasso diariamente que foi uma boa escolha, que eu sou mais feliz agora sem você, mas como é que eu faço pra sentir isso? Vivo num conflito grande entre saber disso e realmente sentir isso. Queria te dizer que tinha muita coisa que a gente podia ter mudado juntos porque essa porta tava aberta, mas eu não sabia como entrar e você não sabia como me puxar pra dentro. No fim das contas, eu acho que a gente viveu um amor-aquário. Cada um de um lado, intocados, separados por uma película de vidro que nos protegia de realmente tocar no outro. A gente só se via, e achava que se ver era o mesmo que se amar.
Eu queria te dizer que eu odiei as suas partes feias. Não porque eram feias, mas porque ressaltavam as coisas que eu odiava em mim. Você me lembrava o meu pai, você me lembrava minha mãe, você me lembrava os demônios dos quais eu fugia. Tudo em você era um espelho que eu não queria ter em casa. Eu só conseguia te amar de olhos fechados, de corpo fechado, te ouvindo falar sem parar sobre como eu fazia você se sentir bem. Mas e eu? Como eu me sentia? Eu queria te dizer.
Eu queria te dizer que tinha muita coisa entalada e, às vezes, eu ardia em febre. A medicina chinesa diz que o nosso corpo codifica os sinais de como a alma se sente e externaliza isso. Amigdalite, faringite, ínguas na garganta, tudo uma questão de não botar pra fora. Mas o amor é um bom ouvinte. Eu fui um bom amor pra você? Ou você fingiu que eu era esse tempo todo sem saber que sim ou que não. Porque eu nunca te disse nada sobre isso. Aliás, eu nunca te disse nada. Você só se ouvia, ecoava, rebatia nas paredes suas próprias ondas sonoras. Prazer, chegamos até aqui em silêncio. Eu queria te dizer que.
Eu queria te dizer um punhado de coisas que eu deixei de dizer em prol do amor. Achava que manter silêncio seria uma maneira prudente de seguir com as coisas boas. Mas não dá pra fugir do efeito que isso causa. As coisas acumulam, a paciência se esgota, os ouvidos começam a doer e a gente descobre que amor nenhum é bom ouvinte se só se cala. Você também descobriu que amor bom não é aquele que não ouve nada. Mas não fui eu quem te disse isso. Eu não disse nada. Eu até queria te dizer isso tudo agora, mas já foi, já era, já passou, já basta. Deixa pra lá.
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