Plataforma.


São quase nove horas. Eu pedi para que ela não se atrasasse. Se viesse, eu ficaria. Se não voltasse, eu iria embora de vez. É estranho isso tudo depois de idas e vindas nessa estação. Foi aqui que nos conhecemos depois de uma longa viagem pela Europa. E foi aqui também que nos colocamos à mercê do destino: Ou parte comigo ou me parte de vez. Ela era uma daquelas jovens malucas que querem mudar o mundo. E acreditam piamente que podem fazê-lo com seus discos de vinil, seu visual transado de anos 20, suas fitas de cabelo e suas calcinhas de bolinha. Ela relutou tanto em me deixar sentar do seu lado. Também pudera, eu era o tipo de burguês que ela detestava e repudiava do alto do seu apartamento em um dos subúrbios de Paris. Eram ela e seu vinho irlandês, misturados com o cigarro agridoce e o vestido transparente que usou da primeira vez. Ela ficava linda à luz do luar e as suas convicções e reclamações amorosas pareciam não fazer sentido para alguém tão perfeita.

Eu tento disfarçar, sabe. A cada passante, um olhar de compaixão é lançado sobre mim. E a cada vez que isso acontece eu sinto um aperto de angústia no peito. E acho que os estou enganando ao manter a pose com o traje fino, ou com o livro aberto e meus óculos de grau no rosto, ou ainda com fones de ouvido que tocam coisa alguma enquanto eu divago com a mente lá longe. Mas me engano toda vez que levanto os olhos das páginas em branco que tento ler em vão: eles têm razão em admirar minha tristeza. Afinal, eu sou um espetáculo que pode ser facilmente ignorado de longe: não há brilho, não há beleza, não há história a ser contada. Não há um único sinal, ou mensagem, ou telefonema indicando que ela realmente virá. Vai ver ela desistiu de mudar meu mundo no último momento. Vai ver ela encontrou alguém menos paranóico e suportavelmente ético como eu não sou. Vai ver ela olhou melhor as fotos, reviu as cartas e descobriu nos meus garranchos que viver de amor não é lá uma boa ideia.

Existe um quê de esperança e um quê de angústia maior ainda na espera de uma plataforma. Rostos borrados pela velocidade dos passos contam milhares de histórias em suas feições. Dentre comédias e tragédias, dramas e romances, alguns traços revelam mais do que deveriam sobre essa ficção que é a vida de cada um. Se eu pudesse prestar atenção a cada olhar no instante em que os transeuntes passavam, seria capaz de escrever milhares de livros sobre as mais fabulosas histórias. Mas eu sou egoísta quando amo e ainda mais quando espero. Essas pessoas passam por mim sem nem me incomodar. Sem nem despertar um leve interesse em conhecer melhor algo que não seja a minha história. Meu relógio parece ter parado. Aliás, descobri que meu coração consegue bater mais rápido que os ponteiros dos segundos. Tic toc tic toc. Nada dela ainda. Será que ela se arrependeu de ter acreditado em mim? Não a culpo: no amor todas as promessas são vazias. A gente que vai lá, chega mais perto, deposita nelas um pouco da gente e elas ganham algum peso. Por isso que não dá pra amar sozinho. Promessas não se cumprem sozinhas. Por isso também que nem adianta se prometer alguma coisa: raramente se consegue cumprir uma promessa vazia.

A minha aflição é porque quero que o rosto dela apareça no meio da multidão antes que saia o trem. Ou perco o trem ou arrisco o destino. Aqui não tenho escolhas nem como voltar atrás. Ou perco o futuro ou a perco de vez. A última chamada está sendo feita e meu olhar ainda não a encontrou por aí. Ou me perco ou perco toda a esperança. Não vejo mais laços de cabelo, sorrisos infantis, nem discos de vinis com cheiro de perfume barato. Ou perco o tempo ou perco tudo. Acho realmente que ela não virá. E agora só me basta aceitar que foi a escolha que ela fez. Ou ela me perde ou me perco no escuro. Guardo as poses, o livro, o fone, a imagem da plataforma lotada. Guardo tudo. Me perco pelos passantes. Me perco pelo mundo.”

E em algum lugar do leste europeu, ela está parada desistindo de tudo. Ele não apareceu na estação, nem mandou recado avisando alguma coisa. Ela tinha certeza que ele apareceria, que mudaria seu mundo, que não eram promessas vazias. Mal sabem eles que o problema foi um desencontro de percurso.  Ele a esperou na estação onde embarcaram pela primeira vez, e ela o esperou no destino de desembarque. Sem saber, colocaram um ponto final na história ao entrarem em seus respectivos trens. Se ficassem parados, talvez, tivessem se encontrado.

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