Eu vivo numa cidade dos amantes. Aqui se encontram os mais perfeitos tipos de amantes que se possa imaginar. Desde os trágicos, inspirados em algum conto grego ou troiano, até os românticos incuráveis, regados a flores e declarações. O comércio aqui sobrevive dos amantes. São multinacionais de floriculturas, pólos industriais de chocolate e presentes, lojas inteiras de pelúcias e vinho e milhares de cinemas pela cidade. Hoje, mais precisamente, é o feriado dos amantes eternos. É a data mais importante dessa cidade desde a sua fundação. E não há amante aqui nessa cidade que não celebre essa data. Todos eles se retiram e passam o dia juntos, vivendo como se não existisse mais nada, como se a única coisa que importasse fossem eles. Não é muito diferente dos dias comuns. Todos esses amantes vivem para o seu par para sempre.
Entendam que a origem da minha cidade é desconhecida. Uma força mística criou um vínculo entre duas pessoas, que as prendeu à outra pelo resto da eternidade. Um amante não sobreviveria sem seu respectivo par e vice-versa. No começo eu achava que nós tínhamos escolha, que a tradição iria apenas nos prender se deixássemos. Mas da primeira vez que vi meu par, eu entendi que a força que nos unia era quase como se tivesse sido determinada pelo destino. A gravidade sumiu, qualquer tipo de problema sumiu. Éramos nós dois para todo o sempre. O grande problema disso tudo é que os amantes permaneceriam amantes e amariam até o fim dos tempos. Não houve caso de um ficar sem o outro para contar a história. A dor da perda era muito grande.
Eu caminho por aqui frustrado no dia de hoje. Eu já fui um amante, hoje sou uma aberração. Sou pertencente a um novo grupo: os solitários. Esses eram serem mitológicos de raças desconhecidas que não possuíam amantes ou que perdiam os seus e continuavam a viver por aí sem rumo. Era o que a gente aprendia na escola. Eu já fui um amante um dia. Mas ela partiu. Alguns dizem que ela pertencia a um grupo da resistência que queria revolucionar a Cidade dos Amantes e fundar a Cidade das Opções. Outros dizem que ela não acreditava nessa coisa de amor, uma moderna reacionária. Uns bons e poucos dizem que ela queria ser livre e que o problema era comigo. Mas, de toda forma, quem ainda está vagando por aqui sou eu.
Essa cidade sem fim não me parece mais presunçosa. Tudo bem que os amantes estão mais cafonas do que nunca, amando e amando de verdade. Onde quer que errem, há perdão. Onde quer que julguem, há volta. Onde quer que pisem errado, há a mão do outro pra levantar. Os amantes não guardam mágoas, não tentam encontrar outros amantes. Pelo contrário. Eles sabem que o feitiço dos laços que os unem é forte demais. Eu que dei o azar de me tornar uma exceção a essa regra. E como dizem as profecias: eu vou errando até o dia em que a minha sorte mudar. Vou errando caminhos, reconhecendo detalhes em lugares que ninguém mais vê, levando o coração na mão para que um dia ele possa retornar ao seu lugar. Eu sou um erro antropológico nessa cidade. Ou melhor dizendo, eu sou um erro amoroso no meio disso tudo.