Ele vive por não ter pra onde fugir. Desde que aceitou essa condição como ponto de partida, resolveu aproveitar cada minuto único dos dias, meses e anos que se passarão. Já tentou se perder inúmeras vezes naquela festa alternativa, mas a cada LSD que tomava as coisas pareciam ainda menos agitadas e deturpadas em sua cabeça. Ele reclama a cada despertar que o barulho dos violinos do estúdio ao lado o incomoda mais que mil engarrafamentos na ponte Rio-Niterói.
Ela foge por não ter por que viver. Desde que se negou a entender porque seus pés miúdos deixavam marcas no carpete novo da sala, decidiu se precipitar a cada tentativa de felicidade. Provou pro mundo inúmeras vezes que era uma garota sortuda, daquelas que encontra amores a cada dois meses e eles realmente ligam de volta. Mas o seu diário de capa dura é o único que sabe quão autodestrutiva ela pode ser. Ele também é o único que explica o fato dela se assustar tanto ao se ver feliz.
Eu escrevo sobre eles porque o escuro do quarto dela denuncia uma luz acesa no prédio em frente. Escrevo porque ele ainda não admitiu que não consegue encarar a escuridão nem depois que se tornou adulto. Escrevo porque ela sempre passa pela cafeteria em horário comercial, de preferência quando tem certeza que ele não está lá. Escrevo porque ele se droga pensando em enxergar todas as cores do cabelo dela e se decepciona ao ver tudo preto e branco. Escrevo porque ela se viciou em filmes franceses cujas premissas nunca sejam altas demais a ponto de alguém os recomendar. Escrevo porque ele acorda quando é hora de sair e esquece as chaves na porta na esperança de que ela volte para buscá-las. Escrevo porque ela fotografa a beleza que só ela consegue ver, mas deixa de lado a chance de se achar em meio à sua própria vida.
Ele passa pelo prédio azul escuro sempre que sai pela pra comprar cigarros. E desenvolveu uma mania irritante causada por passar tempo demais exposto a ela, diagnosticou o médico. Ele não consegue olhar alto demais: sua visão sempre para no quinto andar. É como se algo o travasse. O pior de tudo é que ele sabe que não importa a quantidade de cigarros, sejam dez ou duzentos dias, ele nunca vai atravessar a rua. Existe um limite travado ali. Existe uma fronteira. Seria até fácil demais atravessar, mas ele é gentil demais pra conseguir empurrar uma porta que um dia foi fechada com tanta força em sua cara.
Ela volta só volta pra casa depois das dez. Desacostumou-se a andar com o cão que tinha antes de se mudar pro prédio azul escuro. Na verdade, o cão mudou-se com ela. Acontece que, há uns dias atrás, quando ela descia para pegar as cartas e seguir para o parque, o cão soltou-se da corrente e atravessou a rua. Parou num prédio cinzento que ficava em frente ao seu. E ela não o chamou de volta. Sabia que nunca mais o veria. Ele atravessou a rua de forma permanente. Mesmo que abrisse a porta outras dez mil vezes, ela continuaria fechada. E tanto o cão quanto ele entendiam isso.
Ele revê cada detalhe da história enquanto escova os dentes e assiste Telecine pelo espelho do banheiro. Decidiu que vai ficar hoje em casa, como não fazia há tempos. Talvez fosse bom recordar a última vez que… deixa pra lá. Ele já pegou o casaco e saiu pra tomar sorvete. Não entendo essa vontade própria da personagem em tomar algo gelado no frio. Nem se eu quebrasse o elevador teria como ele desistir disso. O problema é que não consigo controlar os dois ao mesmo tempo. E o resultado é que ela viu que a luz do apartamento em frente estava apagada e achou melhor sair pra beber alguns drinks na inauguração da nova boate da cidade. Eu podia ter sumido com o convite dela ou feito o salto dela quebrar, mas ela está com nome na lista e não precisa de saltos pra elevar sua capacidade de tomar decisões. Parece que fui eu quem decidiu assim, mas os dois abriram os portões ao mesmo tempo. E se olharam ao mesmo tempo. Não sei o que se passou na cabeça deles, porque a esta altura eu já tinha largado os papéis e a caneta. Eu tinha saído correndo pra tentar evitar o desastre. Peguei minhas palavras e corri pra levantar um muro na fronteira deles. Talvez assim eles nem perceberiam que o outro existiu. Mas era tarde demais quando cheguei.
Parados de frente pro outro como se fossem espelhos, cada qual no seu lado da rua. Nem sorriso, nem amargura. Nada. Nem um esboço de expressão. Passou pela cabeça dele que ela não tinha mudado nada. Passou pela cabeça dela que ele não era mais o mesmo. No momento em que tentei puxar a linha que os separava pra ver o que acontecia, eles me olharam. E me pediram silenciosamente para deixar que seguissem sozinhos. Derrubei as minhas palavras nesse momento e acho que emudeci. Eles ainda me olhavam e caminharam pra perto de mim. Um de cada lado, apanharam as palavras e agradeceram por não ter tirado a linha do lugar.
Ele tinha entendido tudo no momento que a porta bateu. E sorria pra isso. Não era ela, mas o fato que o tinha feito entender que era preciso seguir em frente. Ela tinha batido a porta como as outras cento e noventa e nove que bateu. E achava graça nisso. Tinha se prometido que a porta de número duzentos não seria fechada assim. Eles tinham tudo escrito e planejado, mas me forcei a acreditar neles como nem eles mesmos acreditavam. Não acreditavam em dois, mas acreditavam em si mesmos. Cada qual, com minhas palavras, resolveram escrever a sua história e manter a linha para separá-los. Ele foi pela direita e ela seguiu para a esquerda.
Eu fiquei ali parado. Tinha que voltar pra casa, sem minhas palavras, sem minha história pra contar. O mais curioso é que não voltei de mãos vazias. Quando percebi, eu segurava dois pesos. E me dei conta de que, pra aquela história, bastava apenas uma medida.