“Hoje o tempo voa, amor”


Era a terceira vez que ela tentava escrever alguma coisa. Digitava uma frase e apagava em seguida. Nunca conseguia terminar aquele e-mail ou mandar as dezenas de cartas que tinha escrito. Não tinha a coragem de pegar o telefone e fazer uma ligação: seu orgulho também a impedia.

Ele já não agüentava mais dormir. Mas por incrível que pareça, acordou com uma disposição e uma felicidade radiante naquele dia. Bem diferente dos meses anteriores. Havia se afastado dos amigos, do trabalho, da família… Vivia isolado naquele apartamento fechado no Centro da cidade. Só saía uma vez por semana para comprar alguma comida. De resto, fazia tudo pela internet. Nunca teve a esperança ao seu lado, mas naquele dia em especial, parecia que ela o acordara com um beijo de boas novas.

Fazia mais de cinco meses que não se conheciam mais. Encontraram-se, se conheceram demais e se tornaram indiferentes. Ela, ao menos, se tornou indiferente. Fingia que tudo estava bem, orgulhosa como só ela. Não queria dar o braço a torcer. Ele só aceitava o fato de que não poderia estar mais com ela como queria. E o tempo só fazia questão de confirmar isso. Os CDs dos Beatles em cima do rádio e as caixas de pizza empilhadas na cozinha dele também confirmavam.

E em pensar que tudo isso começou com uma discussão boba sobre quem amava mais o outro. Não conseguiam aceitar que eram amados, preferiam discutir e gritar dolorosamente que amavam mais e que o amor do outro nunca seria igual ou parecido; seria sempre menor.

Ela resolveu que não podia mais esperar. Disse a si mesma e ao seu orgulho que tomara uma decisão. Amor que é amor não se prova, se vive. Resolveu deixar de lado sua mania medíocre de quantificar as coisas e de querer se provar a todo tempo como a melhor. Resolveu fazer isso porque nesses últimos meses não conseguia se concentrar em nada, não tinha como se provar mais; se sentia uma perdedora, com razão. Pegou as chaves do carro e saiu em direção a um conhecido apartamento no Centro.

"Hoje o tempo voa, amor. Escorre pelas mãos."

Ele sorria como nunca sorriu antes. Resolveu limpar a casa, mudar o CD que estava tocando. De repente, a vassoura se transformou em sua

melhor companheira de dança. Sua casa era uma festa sem fim. Era como ele se sentia. Não entendia bem o porquê, mas sabia que todo aquele tempo isolado, toda aquela tristeza estava chegando ao fim. Decidiu se encantar com a vida. Amor que é amor se deixa encantar; se deixa levar pelos quatro cantos do mundo de mãos dadas. Beijou a foto dela. Beijou como se aquele beijo nunca tivesse saído dali.

Ela esperava com ansiedade em um engarrafamento. Não via a hora de se deixar vencer; de se deixar ganhar. Uma consideração, as palavras certas e um olhar de quem nunca desviou os olhos seriam as coisas que sabia que iria encontrar. Conseguia pensar na possibilidade de que aquele encontro seria, enfim, o primeiro dos dois com o amor.

Ele terminava a arrumação. Encontrou uma velha caixa com alguns remédios fora da validade e os colocou em cima da mesa para decidir o que fazer com eles depois. Foi até seu quarto, vestiu a roupa que estava usando quando se encontraram pela primeira vez e foi comer alguma coisa. Esbarrou em seu diário no meio do caminho e resolveu escrever nele àquela hora.

Ela chegava ao prédio. Estacionou o carro com pressa e pegou a primeira entrada das escadas. A cada passo dado a ansiedade de vê-lo aumentava. Não podia ver a hora de tocar a campainha do 505 e ver a surpresa nos olhos dele.

Ele escrevia com um grande sorriso nos lábios e nos olhos. Sabia que, quando pudesse, ela leria aquelas palavras e se sentiria feliz. Por impulso, levantou-se e destrancou a porta. Voltou à mesa onde estava antes e tomou o seu suco quase todo de uma vez…

Ela, enfim, chegava ao quinto andar. Parou com a mão na campainha, respirou fundo… E decidiu não tocá-la. Decidiu colocar a mão na maçaneta e avaliar se os hábitos dele continuavam os mesmos. Toda sexta, como de costume, ele deixava a porta aberta para que ela entrasse “de surpresa”. Uma das coisas que ele mais gostava nela. Entrou de uma vez só com a esperança de uma criança na noite de natal. E perdeu de todo a sua esperança da mesma forma que perde uma criança ao descobrir a farsa do Papai Noel …

Ele estava lá. Deitado em cima daquela mesa. Trajando a mesma roupa do encontro de tempos atrás. Em suas mãos estavam caixas de remédios controlados, com prazo de validade vencidos e próximo a ele havia um copo com um pouco de suco… No diário aberto, algumas palavras rabiscadas, alguns trechos que não se podia compreender.

“Meu amor, você venceu. Hoje o tempo voa, amor… Mesmo sem se sentir. E não há tempo que volte, amor …Vamos viver o que há pra viver. Vamos nos permitir …”

Ela não entendia. Mas ele descobriu que não poderia ganhar dela enquanto ela ainda acreditasse que não poderia perder. O trecho de umas das músicas preferidas dos dois servia para confirmar sua vitória e a conseqüente derrota dele. Ela não entendia que demorou demais. Porque, depois de algum tempo, a solidão não se suporta mais. A solidão adora companhia. E, sem orgulho, aceita de braços abertos quem se entrega a ela.

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