(Por anônimo)
Eu estava encharcado de sangue. Dos pés à cabeça. Rosto, mãos e pernas estavam com aquela mistura preta e vermelha que o sangue de outra pessoa deixa ao secar. Encharcado talvez não seja a palavra certa, já que sangue seco gruda na pele, de uma forma quase terrosa. Como barro seco.
Eram duas e meia da madruga, quando a enfermeira avisou: “Você precisa se levar”. Ao me olhar no espelho do hospital enquanto me lavava de todo aquele sangue, me perguntei: “Como foi que eu vim parar aqui?”
Aproximadamente um ano atrás conheci uma garota, me apaixonei e acabei indo morar junto com ela. Na verdade chamávamos todo aquele processo de: passar muito tempo juntos. Voltava para casa da minha mãe uma vez a cada duas semanas para passar uma noite e jantar com ela e o namorado dela. Mas acontece que com o passar do tempo a casa onde nasci e cresci foi deixando de ser o meu lar. Eu já não reconhecia mais as ruas ao redor e meu quarto já começava a ter aquele cheiro de mofo de quarto fechado e abandonado.
Por algum motivo, ou por vários deles, não deu certo. Aos 26 anos eu era o primeiro de meus amigos a assumir o compromisso sério de ir morar com alguém e aos 27 anos eu era o primeiro deles a se separar. Voltei para casa da minha mãe. Triste e com orgulho ferido.
Posso dizer que o fim do meu relacionamento me deixou triste, mas voltar para aquela casa que já não era mais minha foi a pior parte. Aquele já não era mais o meu lar.
Meus pais se separaram enquanto eu fazia intercâmbio. Ao voltar de viagem, eu era mais um filho de pais separados. Porém, com 22 anos nas costas, pensei que nunca fosse sofrer com isso. Mas nunca imaginei as dificuldades de dividir a minha casa com outro homem que não fosse meu pai.
Há algo de clichê em um filho não gostar do namorado da mãe. Fico triste em pensar que eu sou apenas mais um para confirmar o estereótipo. Para completar, minha mãe nunca me ajudou na escolha de seus parceiros. Um pior que o outro. Mas nenhum dos seus primeiros namorados poderiam me preparar para ele.
Barulhento, malandro, falastrão. Nem o time combinava com o meu. Ele Corinthians, eu Palmeiras. Sempre falando alto pelos cantos, tentando tirar vantagens em toda e qualquer situação e entoando para os quatro ventos como ele era melhor em tudo que fazia.
Confesso que nunca dei brecha para conhecê-lo melhor, erro meu. Você tem que abrir uma brecha para alguém que vai morar no mesmo espaço que você. Porém, ele nunca me mostrou atributos que merecessem a minha amizade. Sempre preferi um cumprimento discreto e ficar no meu canto quieto. Bem longe dele.
Ao mudar de casa, fiquei aliviado com a perspectiva de apenas ter que vê-lo de vez em quando. E, surpreendentemente, até comecei a me dar melhor com o sujeito quando visitava minha mãe. Trocávamos meia dúzia de palavras e ele parecia ser um sujeito melhor do que eu imaginava. Mal sabia eu.
O meu voltar para casa coincidiu com o momento em que larguei tudo para me dedicar ao meu projeto pessoal. Meu escritório de casa seria o profissional e meu turno de 8 horas por dia viraram quase 16 no conforto do meu lar. Foi quando as coisas começaram a ficar ruins.
Ocupado, eu falava cada vez menos com ele e ele parecia mais incomodado que nunca. Mas não foi só isso que mudou. O tempo todo, percebia no namorado da minha mãe a impressão de que ele tentava mostrar que era o dono da casa.
A casa, que mãe vó deu para minha mãe, que meu pai ajudou a construir e que um dia eu ei de herdar, aos olhos daquele indivíduo. era dele. O sujeito mais liso e metido a malandro que eu conheci na vida. Não queria confusão. Queria ficar no meu canto e de todas maneiras possíveis evitar qualquer contato com ele. Até aquela noite.
Passei quase uma semana dormindo cerca de 4 horas por dia, até uma madrugada que tive que virar trabalhando e ir para um evento logo cedo. Exausto, cheguei em casa a tarde e capotei de sono. Acordei a noite, quase madrugada para trabalhar novamente. Foi quando começou a discussão no andar de cima.
Tem dois tipos de briga que você deve evitar entrar no meio: briga de família e briga de casal. Se você não faz parte da discussão, tente manter a distância. Foi o que eu fiz. Não era a primeira vez que os dois discutiam e não seria a última. Me fiz de surdo, até ouvir as palavras mágicas: “Socorro”.
Eu não te conheço e talvez nunca vá te conhecer, mas te desejo uma coisa na vida: que nunca ouça sua mãe gritando por socorro. Não há palavras para descrever o sentimento de impotência, desespero e medo que passam pela cabeça. Pela primeira vez na vida, dentro da casa onde nasci e fui criado, tive medo. No lugar onde dei meus primeiros passos e falei minhas primeiras palavras. Naquele templo sagrado onde vinha chorar os fins de namoricos nos tempos de escola ou comemorar minhas pequenas vitórias: passar no vestibular, o prêmio de melhor ator no festival de teatro, o primeiro emprego. Eu tive medo no lugar que deveria ser o meu porto seguro.
Em menos de um minuto eu estava no segundo andar da casa. Arrombei a porta do quarto da minha mãe com um chute. Uma força que não me pertencia tomava conta de mim. Ele estava em cima dela. Minha mãe com o rosto vermelho e chorando pedia ajuda para mim.
Com uma educação que não pertencia a aquela situação, pedi que ela descesse para a cozinha para conversarmos. Mandei que ele esperasse nossa conversa, senão chamaria a polícia.
Na cozinha, tentei servir um copo de água para minha mãe, mas ele não queria esperar. Ele já estava de novo tentando ir para cima dela, gritando qualquer coisa que não lembro. Juro, tentei ao máximo possível conversar, mas ele, embriagado como fui descobrir depois, queria com toda fúria do mundo partir para cima dela. Foi quando segurei no peito dele e ele disse as palavras que antecedem toda briga que eu já vi na vida “Não encosta a mão em mim”.
Tentei levar minha mãe para meu quarto, mas ele continuou gritando e tentando ir para cima dela, foi quando, no batente da porta de um cômodo para o outro, intervi: “Você não vai passar”.
“E quem vai me impedir? Você, seu filho da puta? Então, vem” e ele tentou me dar um soco. Se você já me conhecesse, saberia de cara que eu sou a última pessoa de quem se espera uma briga. Baixinho, gordinho, prefiro lançar uma piada do que um soco na direção de alguém. Mas aquela noite não era da comédia. Estava mais para um filme de terror.
Não sei onde, no meio daquela noite, eu peguei o monopé da minha câmera em mãos. Um bastão de alumínio com algumas proteções de borracha. Foi esse bastão que impediu o soco do namorado da minha mãe e abriu um buraco no meio da cabeça dele. Mas aquele era apenas o ponto de partida.
O sangue mal começava a correr pelo rosto dele e eu já agarrava o pescoço dele e batia na cabeça dele. Cada soco cobrava um pedido de desculpas por ele ter encostado a mão em minha mãe. Antes que ele pudesse esboçar qualquer reação, fechei ele em uma gravata.
Minha vontade era apertar até que ele nunca mais pudesse levantar. Foi quando um grito me trouxe de volta. Minha mãe chorando me pedindo para parar. Foi quando entendi o estrago que tinha feito.
A parede branca da sala exibia uma macha vermelha. Quase uma obra de Pollock feita de som e fúria. Minha barba, braços e pelos da perna pingavam sangue. E ele implorava, com pouco fôlego que tinha, para minha mãe que o levasse para o hospital. Se tem uma coisa que eu sempre soube fazer na vida, foi assumir a consequência dos meus erros. Botei o filha da puta no carro e levei para hospital.
No caminho, enquanto ele chorava e berrava veio a confissão: “Desculpa, eu não queria fazer isso com sua mãe. Eu bebi hoje, confesso que bebi. Ai a gente começou a discutir e eu fui para cima dela e tentei enforcar ela. Mas não queria ter feito isso, não queria que tivesse terminado assim”.
Algum tipo de frieza e calma tomaram conta de mim. Ao invés de continuar a briga que tivemos, apenas tentei acalma-lo e leva-lo para o hospital mais perto de casa. Enquanto esperava o médico dar os pontos no sujeito, a enfermeira disse: “Você precisa se levar”.
Parado, olhando meu reflexo cheio de sangue no espelho, eu sou aquele sentimento de fazer justiça que muitos nunca puderam concretizar.
Eu sou o espirito da vingança de todos os filhos que viram a mãe apanhando do pai ou namorado e nunca puderam fazer nada. Eu sou aquela vontade de defender um oprimido que você tem, mas nunca põe para fora.
Gostaria de dizer que esta é uma incrível história feliz de reconciliação. Que no fim, eu e minha mãe decidimos que ele não deveria mais morar em casa conosco. Que hoje vivemos os dois uma vida feliz, mas infelizmente não é o caso.
Hoje a coisa segue como se nada tivesse acontecido. Minha mãe e ele continuam juntos, como as agressões da noite fossem apenas uma briga cotidiana. Daquelas que uma noite dormida no sofá já apaga.
De lembrança da noite, duas cicatrizes. A que deixei no rosto dele e a ferida aberta que ele deixou na minha casa. Eu nunca mais vou conseguir dormir em paz neste lugar.