Eu estou deixando você


Peguei aquele trem com a mala presa entre os dedos e não ousei voltar os meus olhos para o caminho que estava prestes a deixar para trás. Ouvi de longe a sua voz – aquele timbre, aquela entonação, aquele jeito meio rouco e o mel que escorria por entre cada sílaba são, no final das contas, tão seus que eu não poderia jamais pensar que pertencem a qualquer outra pessoa. Fingi que não era eu, que aquele nome jamais havia ocupado este corpo, que as minhas mãos não tremiam desesperadamente e ameaçavam derrubar no chão sujo alguns bons meses de economias, algumas trocas de roupa e dois pares de sapatos um tanto gastos, mas que ainda cumpririam a sua missão.

Fecharam-se as portas. Apitou o último sinal. Ouvi o som do seu punho contra o material gasto da composição, mas ela não cedeu. Permaneceu rígida. Ela é mulher, feita de aço e revolta, e nenhum golpe lhe faria afastar os braços e permitir que um homem como você alcançasse alguém que buscava, dentro de suas entranhas metálicas, um abrigo passageiro. Vencemos, eu e ela, ela e eu.

Quando encontrei o número do meu assento (e eu o fiz de cabeça baixa, apavorada, aterrorizada com a possibilidade de encontrar os seus olhos vidrados, lá do outro lado da vidraça), atirei-me sobre ele e suspirei. Suspirei alto, num misto de alívio e absoluta incerteza. O bilhete esmagado no bolso da minha calça me sugeria um lugar para recomeçar, mas não exatamente um futuro. Quem é que sabe do futuro, me perguntaria você, com aquele jeito de fazer troça de todas as minhas ideias, e eu lhe daria os ombros porque não saberia responder e não gostaria de, pela milésima vez, lhe dar a impressão de que não sei nada sobre coisa alguma. Se às vezes me parecia que eu era estúpida demais para você, hoje a situação muda radicalmente de figura: você tinha medo do quanto eu nunca tive medo de perguntar. E, um pouquinho de cada vez, tentou me tornar não apenas dócil, mas pateticamente apegada às suas concepções de mundo e em eterna necessidade de sua aprovação.

Foi por pouco.

Pena que não há vida possível neste esquema para uma mulher que se deleita em saber as razões que regem os porquês. Não me convence saber da existência das engrenagens, não. Eu quero vê-las em pleno funcionamento, sentir o cheiro de óleo queimado, enfiar o dedo por entre elas e descobrir se sou capaz de parar a máquina ou se acabarei terrível e fatalmente machucada – sempre houve em mim essa fúria feminina que espera destruir o aparelho inteiro sem nem quebrar as unhas. Não que as minhas unhas estejam frequentemente feitas, mas bem, nem todas as frases devem ser levadas ao pé da letra. Quando penso sobre destruir máquinas, no entanto, talvez eu esteja sendo um pouco literal. Que fique no ar, entre os parágrafos, na massa de pensamentos cheios de euforia, o verdadeiro significado de tudo isso.

Quantas vezes eu rezei, no escuro do quarto, para adquirir forças do meu âmago e sumir de perto dos seus olhos cerrados, sempre fixos na minha pessoa, sempre ansiosos para que eu contraísse os ombros e admitisse a minha submissão? E quantas vezes rezei, nos últimos quinze ou vinte minutos antes de saltar para dentro do trem, para que você não derrubasse sua fúria sobre mim caso viesse a interceptar a minha fuga?

Mas não interceptou.

Não conseguiu.

A mãe de ferro me acolheu antes que braços de ferro se fechassem novamente ao meu redor, talvez de forma definitiva.

Pego agora o bilhete amassado na minha mão pequena. Esse bilhete não me dá endereço ou garantia de nada, mas me dá o que eu mais prezo: a minha liberdade, novamente minha. Quem é que sabe o que é que vai me encontrar numa bela esquina, depois de uma curva perigosa, às duas horas da tarde numa quarta-feira ou numa deliciosa manhã chuvosa de sábado? Certamente não você. E isso já é mais futuro do que eu tive em muito tempo.

Ei, moça, me chama o rapaz sentado ao lado. Eu me viro e ele me parece genuinamente preocupado. Desculpe incomodar, moça, mas eu a vi tremendo e não pude deixar de perceber que a senhora está com um olho roxo. A senhora caiu?

Não, eu respondo e não me surpreendo por saber que estou chorando. Pela primeira vez em não-sei-bem-quanto-tempo-meu-deus, o pranto que desce é a minha prova de amor por mim. Não, meu rapaz. Foi um soco. Um soco de punho bem fechado, sabe? Mas não tem problema, moço, porque esse foi realmente, finalmente, definitivamente o último.

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