Todo homem é um potencial estuprador e já passou da hora de nós entendermos o que isso significa


O caso da adolescente estuprada por 33 homens no Rio de Janeiro gerou ondas de comoção pela vítima no país inteiro. Milhares de mulheres sentiram-se violentadas por tabela e usaram as redes sociais para manifestar apoio e indignação. Indignação não só pelo caso isolado da jovem, mas por todo um sistema de opressão muito mais complexo e que transforma todas as mulheres em vítimas. E no meio dessa ebulição de posts de Facebook, o termo “potencial estuprador” começou a ganhar destaque nas postagens. Então alguns homens, muitos dos quais sequer haviam se manifestado anteriormente sobre o caso hediondo de estupro coletivo, acharam realmente necessário salientar que achavam errado categorizar todo homem como um potencial estuprador. Homens que, diante toda essa barbárie, acharam mais importante manifestar incômodo em ser considerado um potencial estuprador do que manifestar incômodo com o fato de que toda mulher ser uma potencial vítima de estupro. Pois bem, vamos lá.

Todo homem é um potencial estuprador. Toda mulher é uma potencial vítima de estupro. Apesar de ambos serem extremos opostos (potencial agressor e potencial agredido) dentro de um sistema de opressão, para que não deixem de ser potenciais e tornem-se efetivos, os dois só dependem de uma coisa: que o homem não estupre. Simples assim. Para ficar ainda mais claro: para um potencial estuprador não se tornar de fato um estuprador, basta que ele não estupre ninguém. Para uma potencial vítima de estupro não se tornar de fato um número de estatística, basta que não haja um estuprador para estupra-la. Não sei se consigo ser mais didático do que isso.

O que aliás, abre um outro paradigma interessante e um bocado óbvio depois que você pega. Sabe todos esses argumentos que alguns utilizam para justificar o estupro? Todos deles envolvem receitas que precisam, vejam só, de um estuprador para se concretizar. Uma saia curta sem um estuprador não é um estupro. Uma dose extra de bebida sem estuprador não é um estupro. Um lugar deserto sem um estuprador não é um estupro. Ficou mais claro agora o que precisa ser problematizado? NÃO EXISTE ESTUPRO SEM ESTUPRADOR. O resto é só pano de fundo. É só pretexto. É só desculpa rasa para tentar se justificar quando acorda de manhã e encara o próprio reflexo desprezível no espelho.

Curiosamente, no geral homens ficam bastante ofendidos quando são chamados de potenciais estupradores. Isso ofende principalmente porque, apesar de obviamente nem todo homem vir a estuprar uma mulher na vida, o termo escancara o fato de que todos os homens estão inseridos na mesma estrutura social. Vamos lá: todo homem É um potencial estuprador. Isso é indiscutível dentro da estrutura do patriarcado. Todo homem é educado desde o momento que nasce para acreditar que tem uma série de privilégios, direitos e poderes imateriais sobre o corpo feminino. E por educado eu não quero dizer que seu pai e sua mãe te ensinavam didaticamente a ser abusivo em casa, ainda que possivelmente isso acontecesse (“segurem suas cabras que meu bode está solto”), mas educado de uma forma muito mais ampla, inconsciente e a nível cultural em praticamente todas as esferas sociais. Esses sinais muitas vezes não seja dito com essas palavras, mas sim com atitudes, senso comum e, principalmente, pela estrutura de privilégios que recebe o nome de machismo. Resumindo, o homem é criado para acreditar que pode estuprar. Resta saber se, a nível individual, ele vai consumar a agressão ou não.

O que me leva a outra coisa: é necessário parar de encobrir o estupro com a desculpa de patologia.  Patologia, segundo qualquer pesquisa rápida no Google, é qualquer desvio anatômico e/ou fisiológico, em relação à normalidade, que constitua uma doença ou caracterize determinada doença. Estupros coletivos não são grandes coincidências, onde, por acaso, havia 4, 13, 20, 33 pessoas que sofrem de um problema clínico no mesmo contexto. Estupros coletivos são um atestado de que a cultura do estupro é um problema de ordem social. Em outras palavras, não tem nada de biológico nisso: o estuprador é construído socialmente, no dia a dia. Falar que eram doentes é tirar a responsabilidade da ação da mão do estuprador. E chamar de monstro também não resolve. Não são monstros, não são figuras mitológicas, não são vilões de conto de fadas para assustar crianças (ainda que segundo um levantamento do Ipea, feito com base nos dados de 2011 do Sistema de Informações de Agravo de Notificação do Ministério da Saúde, 70% das vítimas de estupro no Brasil sejam crianças e adolescentes). São homens, reais, que existem. Se a sociedade cria seus homens como monstros, aí são outros quinhentos.

É preciso focar na grande raiz do problema: o machismo naturalizado na sociedade, o machismo estrutural. É muito fácil para um homem condenar o machismo em atos de extrema barbárie como um estupro coletivo, mas continuar assediando mulheres na rua, no trabalho, na faculdade, em casa. Violência psicológica também é abuso. É fácil condenar um estupro coletivo, mas esse é um dos pontos mais extremos da cavalgada do machismo: se, antes, tivesse sido condenada a piada misógina, a objetificação feminina, o slutshamming, o mansplaining, o gaslighting, então talvez o estupro não tivesse encontrado uma zona social de conforto para ser concretizado. O potencial estuprador não teria virado um efetivo estuprador se não tivesse recebido sinais a vida inteira de que, uma hora, ele poderia vir a fazer isso.

Mas o que é a cultura do estupro? Muita gente trata termos utilizados em militância com certo desdém, então acredito que seja mais fácil explicar usando reflexos precisos no dia a dia. Cultura do estupro são os números do 9º Anuário Brasileiro da Segurança Pública cujos dados mais recentes, de 2014, dizem que o Brasil tinha um caso de estupro notificado a cada 11 minutos. E, levando em conta que apenas de 30% a 35% dos casos são registrados, acredita-se que a relação real seja de um estupro por minuto. Cultura do estupro é o resultado da pesquisa realizada em 2015 pelo Datafolha que revelou que 90% das mulheres têm medo de ser vítima de agressão sexual, enquanto apenas 42% dos homens temem ser estuprados.

“Ah, mas por que nunca nenhuma mulher me explicou isso quando falou em potencial estuprador?” Simples, porque mulher nenhuma tem obrigação de ser didática com homem. Aliás, isso vale pra qualquer sistema de opressão: nenhum oprimido é obrigado a ser paciente com seu opressor, mesmo que o opressor acredite ser bonzinho, recatado e do lar. Se uma mulher chamou um homem de potencial estuprador e ele ficou indignado, é bem provável que ambos tiveram possibilidade de acesso aos mesmos mecanismos intelectuais para entenderem essa lógica. A mulher se informou sobre seu discurso, enquanto o homem ficou na sua zona de conforto. E ignorando o aspecto academicista da coisa, mulheres entendem a cultura do estupro por vivência, homens deveriam (e devem) entender por empatia.

Bem, para terminar, queria dizer que esse texto foi escrito para que outros homens leiam e repensem seu papel na sociedade e, por consequência, seu comportamento cotidiano. Existem correntes feministas que dizem que o machismo naturalizado faz com que homens prestem mais atenção e acabem dando mais valor para o que outros homens falam em detrimento do discurso vindo de mulheres. Portanto, resolvi escrever esse texto porque acredito que meu papel na sociedade é fazer com que esses discursos cheguem em mais pessoas. Mas, sabendo dessa última informação, que tal desconstruir ela também e ler alguns textos escritos por minas que sabem muito mais que eu sobre esse assunto? Seguem alguns links:

Homens, vocês precisam discutir a cultura do estupro

O silêncio que ecoa: a cultura do estupro no Brasil

A cultura do estupro gritando – e ninguém ouve

Assédio, cultura do estupro e adolescentes feministas

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