Este texto não é um mecanismo de defesa


[Para ler ouvindo My blood da Ellie Goulding]

Uma das frases que mais ouvi na minha vida, enquanto crescia, passava por fases difíceis como uma adolescência confusa, foi “você sabia que seu sarcasmo é um mecanismo de defesa, né?”. Sim esse é um texto confessional que remete aos dias em que eu ainda era uma criança gordinha e tímida, que admirava as pessoas que conseguiam ser divertidas, que eram observadoras e faziam comentários sagazes sobre tudo e todos.

Eu cresci e finalmente percebi que para ser feliz eu precisava me aceitar, ser quem eu realmente quisesse ser, e essa pessoa era sarcástica. E o momento que descobri que era assim que eu me sentia bem foi algo libertador. Como se eu tivesse quebrado o espelho em que me via todos os dias com uma marreta bem pesada e depois montado tudo do jeito que me eu enxergava melhor.

Obviamente uma mudança de retraído e calado para sarcástico não passa despercebida. Para todo mundo eu estava usando o sarcasmo como um escudo para me proteger, para esconder problemas obscuros. E comecei a ouvir a frase: isso é um mecanismo de defesa, Rafa.

E olha que eu achava que meus dias de confusão teriam terminado, depois de ter me resolvido em tantos assuntos importantes, essa frase começou a me assombrar e perseguir, minando relacionamentos que tentei cultivar. Porque em alguns momentos eu acreditei que essa sentença era mesmo verdade, que tudo não passava de uma defesa. Nisso, eu deixava de ser quem eu realmente sou, me vestia com os trajes que a outra pessoa queria, virava personagens para agradar cada um que passou em minha vida e me mutilou com essa frase.

Era um grande teatro itinerante minha vida: de relacionamento em relacionamento, eu ia mudando minha pele, não deixando marcas, passando despercebido. Por muito tempo fiquei confuso sobre quem eu realmente sou.

E aí percebi: o mecanismo de defesa mesmo é essa frase, essa frase usada como uma coleira. Ela é usada no momento em que alguém não consegue lidar com sua identidade. Quem quer se defender é quem a usa. Sua religião é um mecanismo de defesa. Suas roupas são um mecanismo de defesa. A cor do seu cabelo, o tipo de livro que você lê, os programas que vê. E para cada vez que você escuta essa frase, a insegurança, como um buraco negro começa a tragar tudo o que te torna único.

Sabe qual a melhor resposta para a próxima vez que você ouvir que algo em você é um mecanismo de defesa?

Eu não preciso que você me entenda, eu não preciso que você me aceite, eu não preciso que minha personalidade se encaixe na sua como uma chave em uma fechadura. Nós não precisamos ser iguais, eu não preciso ser o que você espera, eu não preciso me moldar como barro sob seus dedos tiranos. Se você precisa se proteger atrás dessa frase isso é problema seu. E ainda assim respeito seu medo. Seu medo de querer me entender, de querer me aceitar, de querer que nossas personalidades se complementem como uma boa receita. Eu aceito seu medo do diferente, do inesperado e do mutável.

Eu não espero que esse texto faça você mudar de ideia – e por agora você deve estar achando que ele mesmo é um mecanismo de defesa -, mas eu também não ligo muito para isso. Eu só queria que você soubesse que se a cor do meu cabelo, meus livros e programas de TV, meu senso de humor, minha religião, minha posição política, minha proximidade com minha família, minha obsessão por paçoca, meu vício por CrossFit e até meu sarcasmo são mecanismos de defesa, eu não me importo.

Porque eu me sinto bem seguro com tudo isso.


Nota do Bovolento: “A vida é um jogo de dados” é um livro de contos construído aos poucos por Rafael Farias Teixeira: toda semana um novo texto aqui no Entre Todas as Coisas. Depois ele é adicionado e compilado no aplicativo de leitura Wattpad. Clique aqui para ler o que já foi publicado.

rafaftex

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