Parece que foi ontem que você morreu


[Você pode ler este texto ao som de Love Crime]

Eu tenho paixão estranha por escadas. Sempre que me sinto afrontado ou nervoso, é isso que eu faço: pego aquele casaco vermelho e puído pelo qual tenho muito apreço e desço a rua de casa em profundo silêncio. Caminho então até a praça próxima e, de lábios cerrados, sento-me no cantinho da velha escada – aquela perto dos balanços, sabe? Onde você costumava brincar com os cachorros das pessoas e dar nomes a todos eles. Naquela escada, já quase acostumada ao formato do meu corpo, é onde eu busco abrigo.

Tenho um segredo: sempre escolho os degraus de baixo. Já percebi que ninguém me percebe quando fico ali, então abraço a bênção da invisibilidade, relaxo os ombros e me enrosco no pano cor de sangue que trouxe comigo.

Aperto-o contra o rosto, me afago com a lã envelhecida e, de repente, aquele cheiro de pós-barba barato, cachorros mal lavados e chuva me toma o olfato. É você. É você inteiro naquele suéter e, meu deus, você é tão pequeno. Eu poderia te quebrar com as minhas mãos nuas, mas tudo o que eu realmente gostaria de poder fazer era tomá-lo nos braços e desenhar louvores na sua pele de alabastro.

Se eu fecho os olhos, vou direto para aquela noite fatídica e para os momentos em que você, calmo e controlado, conversou comigo como quem não tinha mais medo. Eu não me esqueço do seu olhar forte, das suas sobrancelhas erguidas, da entrega que nunca esperei que viria de você, e me pego engolindo o choro e afundando mais o meu rosto nos seus pedaços, desesperado, pedindo para que qualquer entidade de boa vontade faça a gentileza de reverter o tempo e juntar o que nunca deveria ter sido separado. Eu espero e peço, imploro, engulo minha súplica de reunião, e me aperto mais contra o ferro da escada. Encolhido no canto, eu não faço parte do mundo. O mundo não me quer. Eu sou um borrão na felicidade dos que passeiam por ali, e essa sensação me encoraja.

Às vezes eu te vejo na minha sala, mas eu sei que você não está lá. Você está no reflexo do meu copo de uísque e me encara de volta quando eu olho no espelho para verificar minhas rugas e olheiras. É o seu toque que me afaga o peito quando eu abro os botões da minha camisa, e eu sempre imagino que são suas unhas finas que afastam a roupa dos meus ombros e a derrubam no tapete.

Ainda é o seu tapete.
Ainda está manchado de vinho.

Não foi por descuido, não. O que acontece é que lembro bem como a mancha foi parar lá, e isso me tira qualquer vontade de apagar os vestígios da madrugada em que você, embriagado no meu colo, tentava arrumar um jeito de se levantar para dançar e sempre caía (com a graça de um javali) nos meus braços. Aquela proximidade, tão estrangeira na época, foi o melhor presente que você poderia ter me dado – você e o rosto de anjo. Você e a expressão que era tão inteiramente sua que eu nunca conseguiria transformá-la em palavras.

Às vezes acho que você está na cama comigo, e fecho meus olhos na esperança de sentir seu corpo quente às minhas costas. Faltam os seus braços delicados ao meu redor. Eu daria tudo para me abrigar no seu tórax limpo, com cheiro de sabonete e aquele delicioso toque de suor e cigarro e também da menta da sua pasta de dente. Você. O seu conjunto de características contraditórias. Sua dificuldade de falar. O tempo que você levou para finalmente me deixar acariciar seu rosto, e como depois se abrigou no meu toque como se tivesse encontrado a sua casa. Eu queria mesmo ter sido sua casa, e a sua cama, e o seu santuário.

Parece que foi ontem que você morreu.

Juliana

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