[Você pode ler este texto ao som de No Angels]
Começou quando eu nem sabia direito o que significava ser gorda. Excesso de tecido adiposo era consequência da minha obsessão por pão de queijo, chocolate e Coca-Cola, não uma doença, um sinal de óbvio descaso de mim para comigo mesma.
Começou quando minhas bochechas, que sempre foram cheias e redondas, viraram motivo de chacota. Meu peso acima do “normal” era apontado como descuido, motivo para que eu fosse relembrada, o tempo inteiro, sobre como estava aquém das demais meninas – e éramos todas meninas mesmo – porque tinha dobras na região da cintura, braços roliços, ombros largos.
Continuou pelos anos que se seguiram. Dos adjetivos que prefiro não colocar aqui porque me abalam até hoje até rejeições porque eu não era bonita, tudo isso me machucou e afastou das pessoas por muito tempo. Eu tinha medo de gostar de alguém e ouvir que eu era só “uma gorda que não sabia o meu lugar” (como ouvi quando, lá pelos meus quatorze ou quinze anos, achei que podia ser alvo de interesse de uma certa pessoa que eu julgava muito atraente). Continuou até que eu comecei a comprar roupas muito largas, calças muito frouxas, casacos muito pesados e entupi meu organismo de laxantes, remédios para emagrecer comprados na farmácia sem qualquer cuidado, doses cavalares de água com limão e frequentes desejos de pular de qualquer lugar alto. Nunca pulei. Não faltou vontade, mas eu nunca pulei. Essa é uma vitória que ninguém tira de mim.
Me acompanhou nas minhas primeiras tentativas de relacionamento. Contaminou, envenenou, desgraçou toda a percepção de que eu podia ser amada e me fez ver demonstrações de carinho alheias como altruísmo – como grandes favores, se eu quero mesmo ser franca. Como se gostar de uma pessoa como eu, imersa em vinte anos de desgosto, ódio e dismorfofobia fosse uma atitude que visasse a salvação da alma de outrem. Quanto tempo me oferecendo em migalhas pra mãos estendidas, quase em êxtase pela atenção bondosa que me davam. Quantos absurdos engolidos.
Nunca me senti bonita. Nunca fizeram questão que eu me sentisse bonita. Desde os colegas que apontavam minhas calças número quarenta e seis aos que falavam da minha gordura como se esta fosse uma ofensa moral e diziam que, se eu perdesse uns vinte quilos, poderia chamar a atenção de alguém. Pensando agora, não sei bem se realmente queria chamar atenção ou se só queria que parassem de me olhar torto. Analisando friamente, penso que meu desejo era mais me tornar invisível do que efetivamente ser elogiada, desejada, virar material de sonho pornô de adolescente.
Tudo isso para dizer que, olhando minha imagem rebocada de batom, aos vinte e três anos de idade, eu ainda não me amo. Não chego nem perto. Tenho desgosto profundo pelo meu corpo, que me acompanha como que uma maldição. O que acontece é que eu decidi que não quero odiá-lo mais. Eu não quero me olhar como quem olha pra uma cruz que tem que carregar. Eu não posso mudar minha estrutura, meus quadris largos, minhas coxas que roçam uma na outra, meus braços que tanto me foram apontados como distoantes do resto de mim. Eu quero aprender a amar tudo o que me foi dito que é feio porque eu sou tudo o que eu tenho. Eu quero olhar para o espelho e recuperar a auto-estima que começaram a me roubar quando eu não sabia nem escrever o meu próprio nome. Quero me querer. E vou. Prometo para mim que vou.