Quando a gente se bastava.


[Você pode ler este texto ao som de Broken Strings – Nelly Furtado Feat. James Morrison]

Tá ali e não tem como negar. A gente anda procurando alguns bons motivos pra olhar pro lado mais vezes – e se esquecer de quem acompanha a gente. O som sai mais alto da garganta e a voracidade com que as palavras saem já dita uma desordem. A gente não tenta mais remediar a coisa toda. É pra ferir mesmo. Pra culpar o outro e dizer que era pra gente estar aqui abraçado ao invés de sofrer essa revolução inteira na vida.

Tá aqui e a gente já não sabe mais por quem se apaixonou. Eu já não tenho mais vontade de lutar por isso e você não admite que sente a mesma preguiça ao levantar do sofá pra se arrumar. A companhia se tornou obrigação. Não tem mais prazer e a gente vive nessa monomania de dar um beijo por etiqueta. De dar as mãos por costume. De apagar as luzes do abajur pra dormir. O nosso “boa noite” ficou tão seco que parece mecanizado. Arrancaram o que a gente ainda tinha de afeto.

Amor era quando a gente se bastava – e só nós dois. Quando a gente não desviava aquele olhar abobalhado de alguma coisa cotidiana que o outro fazia. Quando a gente brincava de se empurrar no balanço pra ver quem voava mais alto. Agora a gente tem o que é nosso e não basta. Eu trabalho horas extras pra não ter que chegar em casa e sentir esse vazio estranho todos os dias. Você exagera na bebida, na comida, nos remédios pra dormir. De repente bateu aquela insatisfação – aquela constatação de que as coisas não tavam mais bem. E daí você parou de atender o celular, e eu não respondia mais as mensagens. Os convites ficaram por conta de um “pode ser” e de um “que horas?” cansados. Pros amigos, nem mais uma palavra. A gente evitava contar o que tinha – porque não tinha mais. Era gastar vocabulário à toa pra explicar – e entender – que a gente não se basta mais.

Tá por vir e não tem muito que fazer. A gente sofre daquela síndrome de querer mais e nem se acusa. Você não se incomoda mais quando eu olho pras outras meninas – e nem me culpo. Os ciúmes simplesmente desapareceram. Despencaram como os castelos de areia que a gente costumava fazer na praia. Não tem mais brisa nem peito pesado se a gente briga. Não tem mais ira e desculpas, e a calma me assusta. Me assusta ainda como o silêncio fere o amor. É nele que a gente descobre que dá certo junto – e se destrói. Quando o silêncio incomoda mais do que as pancadas nas paredes, a gente sabe que as coisas vão ruir lentamente, calmamente, até só sobrar pó. E pedras. Pra gente arremessar sobre o outro e dizer que a culpa por não ter tentado mais um pouco foi sua. Pra gente tentar provar que a gente ainda consegue sentir alguma coisa juntos – nem que seja dor.

E a gente vai fazer isso tudo. Agora ou daqui a algum tempo. Mas enquanto isso, a gente continua sentando à mesa de jantar com uns dois sorrisos fracos. Meu dia foi bom, obrigado. Impassíveis. O retrato da felicidade estável. Pros outros, vai tudo bem. Pra gente também. “Bem é bom”, a gente tenta garantir. Enquanto a gente desvia olhares e segue o ritual, a sopa esfria. O relógio avança. Por dentro, a gente sofre por lembrar de quando a gente – e só a gente – se bastava.

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