Mudei o papel de parede da sala e você nem viu. Troquei a mobília velha da biblioteca e mandei limpar uma vez por semana, por causa da sua alergia à poeira. Coloquei os livros na ordem em que a gente tinha combinado de ler. Aquele que eu te dei primeiro e você leria o meu presente, e depois a gente trocaria. Pintei uns quadros abstratos, como aqueles que você falava tanto nas exposições pra onde me arrastava. Peguei a sua mania de escovar os dentes vendo o noticiário. Pra aproveitar o tempo, sabe? Fiz meu almoço de domingo e economizei o dinheiro do japonês pela primeira vez na vida.
Você sentiria orgulho de mim.
Pintei as paredes da varanda de vermelho sangue. Quebrei as vidraças da estante umas duas ou três vezes. Atendi os vizinhos com olhares estranhos no lugar de xícaras de açúcar. Contei para a terapeuta o porquê dos livros incendiados e do olhar vidrado enquanto a água escorria pela banheira e inundava o apartamento. Toquei na ferida e abri só mais um pouco a pele pra ter mais espaço. Troquei a casca e me fiz de camaleão pra conseguir sobreviver em qualquer ambiente desolado, largado ou solitário aqui de casa. Perdi alguns quilos sem nem precisar de academia e aprendi a falar mal dos outros em alemão, francês e chinês, para que não reclamassem mais dos barulhos à noite. Aprendi a ler bulas de tarjas pretas. Dormi às cinco da manhã.
Coloquei uma poltrona nova pra combinar com o tal papel de parede novo que você nem viu, e pus uma luminária gigante ao lado. Terminei de ler o meu livro e depois troquei pra ler o seu presente. Dei os quadros todos de presente pra minha mãe, e até que as amigas dela gostaram de alguns traços e cismaram que lembrava algum rosto e disseram que eu não era tão abstrato assim como você dizia. Manchei algumas camisas novas com pasta de dente por conta da distração da TV e demorava mais tempo ainda pra trocar a roupa. Me atrasava sempre. Joguei a comida de domingo fora depois da segunda garfada porque faltou tempero, e culinária nunca foi meu forte. Resolvi que gastar o meu dinheiro com o japonês seria mais prazeroso, e seguro para mim mesmo. Esvaziei os frascos na pia e deixei meu sono sem rótulo nem bula médica. Apaguei as luzes e apaguei você.
Você sentiria pena de mim. Mas você também não viu isso.
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