Essa minha mania de sofrer por antecipação.


Ontem meus pés doeram pela primeira vez. Aliás, meus joelhos estalaram bem na hora em que eu fui dar uma corrida para atravessar a rua antes do sinal fechar. Me assustei. Sinais de que o meu corpo não é tão mais resistente assim. Estou ficando velho como a maioria de nós. Mas eu sempre idolatrei essa coisa da juventude rebelde e do poder que ela tem. Dou apoio a causas como o amor livre e o direito de fumar um baseadinho até hoje. Não nasci pra ser careta. Nem careca. Mas as entradas na minha testa me fazem repensar a minha antiga opinião de quão ridículo eu ficaria com peruca. Desconsiderei a vergonha dos fios falsos logo que cruzei a esquina. Se for para envelhecer, que eu assuma isso de frente, com cabeça erguida – mesmo sem cabelo algum – e de queixo erguido. Se bem que, a papada não o deixaria tão erguido assim. Droga! Essa minha mania de antecipar as coisas futuras não é de hoje. Antecipar a velhice é só uma das muitas coisas que eu já tentei antecipar. É que eu não sei sofrer na hora certa. Eu gosto de sofrer por antecipação, o drama (e também a esperança) de sofrer em vão por algo que eu nem sei se vai acontecer ainda.

Eu lembro bem como eu antecipei o não daquela menina das trancinhas no quarto ano. Ela era bonitinha, vai. Você não conheceu, mas posso garantir que valia a pena. Eu já sabia desde o início que ela diria não. E já me martirizava pensando em como seria difícil conseguir driblar aquilo. No dia em que a conhecia, eu sofri. Sofri sabendo que um dia ela me chamaria num canto e diria: ei, psiu, você é só meu amigo, ok? Sofri quando dei parabéns no aniversário dela esperando que ela desdenhasse disso vinte anos depois. Sofri quando dei a ela um ursinho velho que roubei da minha irmã mais nova – e que elas nunca descubram isso – porque achava que ela o jogaria fora quando entrasse pra faculdade. E caí fora por já prever o fora que ela me daria algum tempo depois. O gênero da minha vida sempre foi tragicômico. A cada tragédia inventada e pensada com dez anos de antecedência, eu sofria com a mesma intensidade que sofre alguém no momento exato em que recebe uma notícia ruim.

Me lembro de quando eu antecipei a possibilidade daquela guria estar grávida – de alguma festa louca da faculdade. Deve ter sido quando eu fiquei tri bêbado e nem lembrava mais meu nome. Eu nem tinha entrado na festa e já tinha medo de ser pai. Eu já esperava pela notícia, pelo castigo dos meus pais, pelas horas de trabalho que eu teria que fazer para poder sustentar nós três. Sofri antecipado antes mesmo de perceber que ela já estava agarrada a outro cara de braços atléticos e sorriso debochado enquanto eu já temia pelo dia em que ela escolheria pelo nome dos filhos que eu nunca quis ter. Bobagem. Só fui ter alguma coisa com ela durante o mestrado. E mesmo assim daquela noite foi tão meticuloso que os amigos riam da minha cara de pavor ao conferir a camisinha no bolso de duas em duas horas. Bebi tanto por antecipação que desmaiei e fui parar no hospital. Acho que, dessa vez, essa mania me salvou de ser pai. Ou foi uma completa neurose minha.

Todas as vezes em que sofri antecipado, foram as vezes em que me antecipei na vida. Não posso, não devo, não vou fazer isso. E tomei mais cuidado do que eu deveria. Quem sabe se aquela guria do quarto ano não poderia ter sido minha namoradinha até o casamento? Quem pode dizer que eu não teria feito a melhor viagem da minha vida se não achasse que o avião cairia e todos os 50 passageiros morreriam carbonizados em alguma floresta nativa na Ásia? É cômico. É trágico. Mas sou eu. E só em cruzar a esquina mais uma vez, eu repenso a ideia de usar peruca. Talvez seja melhor eu raspar logo a cabeça antes que os fios comecem a cair e eu sofra. É assim que eu me protejo de sofrer na hora certa.

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