Mais um final de dia. Cansaço e café. Café e cansaço. Rotina que me matava não só pelo sono que eu sentia quando chegava do cursinho, mas porque também não tinha tempo pra mais nada. A única coisa que me salvava eram as aulas de dança na sexta-feira. E disso eu não abria mão. Podia perder qualquer aula de física que fosse, mas nunca dispensava o movimento uniformemente variado da dança.
Chegada a minha querida sexta-feira, me dirigia para a academia de dança da Rua Doze. Era um velho casebre, bem nos moldes argentinos.
Difícil encontrar alguns no Brasil como aquele, pra dizer a verdade. Cheguei uma hora adiantado num dia qualquer em que um dos professores havia faltado. Achei que fosse ter que esperar até que a academia abrisse, porque as aulas só aconteciam à noite naquele dia. Mas para minha surpresa, já existia uma melodia firme e dançante numa das salas da academia quando cheguei.
Alta, firme, esguia, bonita, sensual … Não falo da música que encontrei naquela sala, mas sim da moça que lá estava a dar alguns passos. Seus passos eram firmes, contundentes… Ela tinha um quê de quem sabia o que fazia e provocava a si própria. Parecia um desafio constante adivinhar seu próximo passo. Não digo que esse desafio tenha sido imposto a mim, mas percebia que era um desafio dela: Adivinhar-se e deixar-se levar por si mesma.
Lembro que aprendi a gostar de dança de salão com o meu avô. Era um argentino safado, aquele meu velho! Dançava uma salsa e um tango como ninguém. E foi assim que ele conheceu a minha avó, segundo ele contava. Certo dia, numa praça em Buenos Aires, ele se exibia para as moças que não sabiam dançar. Até que apareceu uma bela brasileira que o desafiou a conduzi-la por entre movimentos ousados de tango. Ele riu da audácia da menina que achava que sabia dançar e se surpreendeu quando viu que ela tinha muito mais leveza e graça que qualquer argentina com quem ele já havia dançado. Foi aí que se apaixonaram. E vovô bem me disse que só tinha aprendido a dançar por causa das moças…
Os movimentos dela eram suaves e fortes. Como ela conseguia manter esse paradoxo? Não sabia e nem entendia. Acho que é mais questão de se fazer parte de algo do que realmente saber o que está fazendo ali. A dança dela era meio que assim: unia um pouco de certeza com um monte de escolhas feitas segundo a segundo quando guiada pela canção. E assim eu me aproximava dela. Ela se movia como num labirinto, rodopiava como um vendaval e se mostrava como uma interessante pintura de Da Vinci…
Aliás, eu já havia invadido a sala até quase a metade. Alguma coisa me havia arrastado até ela e eu ficava ali feito um moleque que vê uma mulher bonita pela primeira vez. Em uns dois ou três segundos que se sucederam quando ela finalmente me viu, depois de sair daquele estado de descoberta dela por ela mesma, rodopiou confusa e parou a dança. Achei que ela ficaria envergonhada ou furiosa por eu tê-la visto desnuda. E quando digo desnuda, digo que a vi como realmente era em seu mais íntimo momento de relação consigo mesma. Nem com todas as roupas do mundo ela poderia ter-se ocultado naquele momento.
Encarou-me, deu passos decididos em minha direção, correu e parou à minha frente. Estendeu as mãos… Eram mãos que pediam um porto seguro, mas pendiam de braços firmes e certos do que queriam. E com o pouco de prática que eu tinha no tango concedi-me esta dança. Ao mesmo tempo em que a conduzia ao meio do salão, a música mudava e se tornava mais agressiva. Bailávamos os dois coordenadamente, numa mesma sintonia de provocação. Lancei-a para frente como no “Tango de Roxanne”. Me olhou nos olhos, com o fogo de quem é desprezada e se atirou sobre mim com ganchos e mais ganchos de pernas e braços, onde o seu suporte era sempre meu corpo e sua fuga era sempre um abraço em minhas costas.
Lanceia- a ao ar numa acrobacia rápida e efetiva. Caiu em meus braços, tocando meu rosto. E, pela primeira vez, abriu os lábios para balbuciar: Julia. Não disse seu nome. Naquele momento, Julia (com um sotaque argentino, falado como “Rulia”) me contava um segredo. Se despiu por completo ao se entregar verdadeiramente. Com alguns poucos sonidos que a música lançava, pudemos nos ater ao movimento de encarar um ao outro. Ela sorria maliciosamente, conforme mandava a dança. Eu a olhava com rigidez e me preparava para o momento em que avançasse para mim. E assim ela o fez. Correu, avançou, pousou em meus braços e congelou em sua pose de final de dança. Julia se soltou de mim, se afastou enquanto eu estava petrificado em um turbilhão de emoções e foi embora com um largo sorriso no rosto.
E mesmo sem conhecê-la e sem saber se a veria de novo, já sabia de toda a sua história. Ver uma mulher em seu ritual mais íntimo, seja ele qual for, nos faz vê-la de verdade, vê-la despida de qualquer máscara ou pretensão que possa haver. E aquela menina argentina que havia me confessado seu segredo quando me disse seu nome, era observada por mim enquanto se observava. E mesmo sem saber mais nada do que aconteceria, eu já sabia tudo. Julia foi como uma estrela cadente. Rápida, bela e cheia de significados. Não precisei fazer desejos a ela. Pois quando se descobre o segredo da estrela, qualquer outro desejo passa a ser pequeno comparado ao que ela o concedeu. Pois quando se descobre uma mulher, qualquer outra coisa deixa de ter importância.