Quando a gente reaprende a ser só


[Você pode ler este texto ao som de Antologia]

Vivo dizendo por aí que pessoa nenhuma deveria enxergar no outro uma âncora. Âncoras são pesadas, servem pra deixar a gente acorrentado a um ponto sem escape, raras são aquelas usadas para prover algum tipo de segurança.

Mesmo pregando a filosofia de que duas pessoas precisam ser indivíduos em um relacionamento, eu e muita gente acabamos caindo no inevitável fato de construir coisas com quem a gente ama durante certo tempo. É impossível criar laços sem criar perspectivas diferentes em cada nova descoberta, ou até mesmo no dia a dia.

Você conhece um restaurante novo com ele e a sua memória afetiva entrelaça aquele local a algo que vocês viveram. Você passa a buscá-la todos os dias no trabalho e não entende por que a sua cabeça não respeita o GPS depois do rompimento. É óbvio, mas não tão óbvio assim: porque você aprendeu a viver com outra pessoa.

Nós aprendemos, ao longo de um relacionamento, a ir a certos lugares favoritos com a tal pessoa. Aprendemos a tomar cafés da manhã em padarias que nos apresentaram, talvez nosso restaurante preferido também mude pra um endereço que a gente desconhecia antes deles. Hábitos e manias são copiados e transferidos: você percebe que passou a usar mais palavras do vocabulário do outro, passou a fazer alguns comentários parecidos também. Não é como se você tivesse se perdido dentro do outro tão profundamente que nem se lembra mais de quem você é. É que você se acostumou a partilhar da vida com outra pessoa, e junto disso acontecem essas coisas que você aprendeu a fazer com ou por causa da outra pessoa.

Dizem que nós somos o produto direto das cinco pessoas com quem mais convivemos, mas creio que acabamos nos tornando um pouco parecidos com quem a gente ama no longo prazo. Isso não significa deixar de lado nossas particularidades, mas as coisas se misturam. Misturam-se tanto que você já não sabe mais ouvir Chico Buarque sem se lembrar dele te apresentando as músicas em LP. Você detestava vinho branco e agora sabe como harmonizar bem com frutos do mar por causa dela. E repete frases, enxerga o outro em lugares, se pega percorrendo caminhos que só tinham sentido com a tal pessoa.

É nessa hora, na hora que acaba, que a gente se pega numa das grandes armadilhas da vida. Como faz pra desalojar completamente o outro da gente? Porque não é só uma questão de cortar laços, superar um relacionamento acabado, enterrar um amor que se findou. Se trata de reaprender a fazer um monte de coisas sozinho, se trata de tirar o outro dos nossos modos costumeiros e da nossa vida. É agoniante esbarrar nele em vitrines, em pratos sofisticados, em viagens de férias. Principalmente quando estamos tentando esquecê-los a todo custo.

Na minha humilde opinião, digo que tal feito catártico de transbordar o outro até restar nada é impossível. Tudo passa, mas algo sempre fica. Algo no seu jeito de falar ficou. Algo nos programas que você agora assiste. Algo na sua série favorita e no delivery de sábado à noite. E isso não é ruim, pelo contrário, é mais natural do que a gente imagina. Parte da nossa vida é feita por pedacinhos que ainda ficaram, por quem já passou, por gente que foi transformando a gente ao longo do tempo. Creio eu que por mais angustiante que isso possa parecer nos primeiros dias depois da despedida, as coisas se acalmam com o tempo. E ao invés de querer botar tudo do outro pra fora, a gente deveria se manter encantado com as partes boas dos mundos dos outros que nós conhecemos. Afinal de contas, amor também é isso, amor também transforma pra sempre a vida da gente.


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