[Você pode ler este texto ao som de I’m Gonna Be (500 Miles)]
Eu a tinha aqui, deitada no sofá enquanto eu passava café, reclamando da programação de domingo de manhã na TV, por que parece sempre que não passa nada de bom? Porque só a gente acordava àquela hora pra ler jornal e andar com o cachorro, meu bem, o resto do mundo tava chegando em casa. E agora eu chego também.
Eu dizia pra ela umas coisas bobas de que precisava ir embora desse mundo e ela me perguntava por que, se o mundo era outro e a gente era abrigo. Eu explicava com um pouco de raiva, um pouco de falta de paciência, que ela não era meu bunker, porque eu sentia que não era, sentia angústia e mesmo que ela apagasse a luz do corredor as coisas não mudariam. Ela deitava quieta do meu lado, te dou espaço, e eu só queria sumir um pouco e ficar sozinho. Agora eu tenho todo o espaço do mundo dentro de mim. E a falta consome.
Eu tentava esconder o tédio que batia quando ela queria assistir Chicago de novo e cantarolava a cada dois segundos, sempre caía no sono e nunca via o filme inteiro. Trocava a vista dela pelo celular nos jantares, a companhia dela por qualquer pessoa durante os dias de semana em que tinha tempo livre. Até no dia em que eu troquei o lado dela da cama e quem deitou não me perguntou meu lado preferido. Vesti a roupa e fui embora pra casa. E agora não durmo mais assistindo Chicago e sei todas as músicas de cor.
Eu a tinha.
Agora eu sou o cara-que-não-tem-mais. O cara que podia ter ido pra casa e rido dela deitando no meu lado da cama e podia também ter esquecido de fechar a porta pra deixar o cachorro pular nela. Podia ser o cara que sai correndo no meio do banho pra ligar o interruptor porque tomou um susto com a água gelada e com ela se encolhendo toda no canto do box. Podia ser o cara que aproveitou a falta de luz pra ser pego de surpresa com um China In Box à luz de velas e podia ter sido o cara que fingiu que não viu as caixas de yakisoba na área de limpeza. Podia ser o cara que canta All That Jazz, mas preferiu ser o Mr. Cellophane que canta sozinho e olha pro lado procurando cumplicidade pra rir da cena engraçada, mas só encontra o Duke (o labrador), que também sente a falta dela. É impressionante como ele também sente que só eu não basto, que falta alguma coisa, que sem ela eu não tenho sido suficiente só pra mim.
Eu dizia. Mas dizia o que não importava, dizia um monte de bobagem e nem ria, dizia que hoje não ia dar pra ir com ela no cinema porque tava com preguiça. E passei a não acordar mais cedo nos domingos e nunca mais passei café pra ela. Passei a achar mais ainda que ela não era meu bunker e uma hora dessas ela acreditou, acreditou que a gente não era mais abrigo.
Agora eu sou o cara que podia ter tido tudo, mas não tem. E ela é a garota que eu sonhei desde que era pequenininho e também é a garota que não acredita em mais nada do que eu digo, nem quando eu deixo um bilhete dizendo que decorei as falas do seu filme preferido porque é tudo o que eu tenho feito, eu tenho preenchido a falta dela com as partes dela que eu ainda posso ter.
E eu? Eu sou o cara que abriu a porta pra ela ir embora. E agora ela já foi.
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