Pegou a taça pelo lado que não estava marcado com o batom. Despejou mais um pouco do vinho e se perguntou de que ano seria aquilo e se deveria aprender a degustar vinhos ao invés de bebê-los só pra relaxar. Leu o rótulo umas duas vezes, mas viu que não entenderia nada. Deu um gole mais fundo e encheu mais um pouco a taça. Pelo menos sabia que vinhos devem ser bebidos em taças, assim como as roupas dela devem ser atiradas pelo chão da sala até alguém chegar pra desabotoar o sutiã dela.
“Deixa que a calcinha eu tiro”, pensava. Era independente. Dessas mulheres que retocam o batom umas vezes ao dia e usam salto agulha pra mostrar que conseguem se equilibrar em qualquer situação íngreme que as coloquem em balanço sob os pés. O seu ritual se repetia em todas as noites estressantes. Em todas as noites que sentia vontade de xingar o chefe e pedir demissão. Em todas as noites em que pensava se não seria melhor jogar tudo dentro da mala e sumir por aí sem ter que atender às ligações da mãe perguntando sobre a vida. E por isso mantinha no ritual a regra de aumentar a música pra dançar sozinha e aproveitar a própria companhia de frente pro espelho. Admirava seu próprio corpo – e julgava toda e qualquer mulher que não partilhasse do prazer de se encontrar sozinha de frente pro espelho admirando a si mesma. “Mulheres precisam sentir que são mulheres quando estão a sós com elas mesmas. Se só se sentem realizadas com o corpo, com a alma, com o que quer que queiram chamar de satisfação pessoal por causa de um homem, tem algo de errado. Falta algo nelas.”
Será que era melhor cortar o cabelo ou pintar de alguma cor mais sóbria? Tinha pago as contas do mês ou a luz seria cortada de uma hora pra outra? Não tinha filhos, mas queria tê-los algum dia desses? E qual seria o método? Inseminação artificial era muito radical pra ela. Seria culpada pelos genes erradas da criança porque selecionaria o possível canalha pai de algum dos seus filhos. E se alguma coisa desse certo? A apresentação de amanhã estava marcada pras 8 horas e ela nem tinha pensado com que roupa iria. O chefe pode esperar, não é? E se não esperar, pode ter certeza de que não vai mais vê-la em sua mesa a partir de segunda-feira! Ela era rebelde, ora bolas. Não precisava de nada pra levar a vida. Mas tinha que ligar pra portaria na manhã seguinte porque o encanamento deu pau e ela não fazia ideia de como consertar. Nem se lembrava do nome do porteiro que faria plantão na manhã seguinte. Será que cometeria a gafe de trocar os nomes? Esperava ter a sorte de o seu Joaquim trocar o expediente com o outro porteiro bigodudo pra não pensar nisso. Abominava as possibilidades de ferir os sentimentos de alguém que fazia parte da parte boa do seu dia a dia. Já ia dar meia noite e ele não tinha chegado ainda. Era por isso que preferia não ter namorados. Ainda mais em São Paulo. Os paulistas têm problemas com horários, trânsito, pratos do dia em restaurantes específicos e baladas que começam tarde demais em dias úteis como se não precisassem trabalhar no dia seguinte. Mas ela não podia fazer nada se tinha gostado daquele carinha todo engomado com um ar de italiano-além-da-pizza que esbarrou num pubzinho novo dos Jardins. Ele a definia com eufemismos. Ela gostava desse jeito dele sutil. Lembra até hoje que anotou na agenda sobre as manias de metáforas e sutilezas dele pra contar pra terapeuta. Sabia no exato momento em bateu o olho no rubor das bochechas dele que teriam um caso. Transaram naquela mesma noite e ai dele se a considerasse uma vagabunda. Quem perderia era ele mesmo, confidenciou ao espelho. Ela era boa com hipérboles desde sempre.
A campainha tocou e ela saiu em disparada – evaporando a nuvem de pensamentos soltos que já se acomodavam no sofá e nas beiradas do quarto dela. Nem acendeu a luz, nem diminuiu a música, nem vestiu pantufas ou algo por cima da calcinha e do sutiã. Recebeu o namoradinho à meia-luz. E nem era com a intenção de ser romântica ou de seduzi-lo. Abriu um sorriso tão largo que revelou uma gota de vinho na beirada. Ele passou o dedo. Ela chupou o polegar dele antes que ele o levasse a boca. Entraram quarto adentro sem mover olhos. Ela o atirou na cama e resgatou o pacote das mãos dele. Deu atenção ao que era prioridade.
Abriu com cuidado. Admirou o objeto de seu desejo. “Não existe nada melhor pra aliviar a tensão de um dia cheio”. Levou cuidadosamente à boca. Fechou os olhos. Deliciou-se com a língua em volta daquele volume. Chupou lentamente até ter a certeza de que poderia repetir a dose. Olhou de relance para o embrulho novamente. Lambeu os beiços. Levantou da mesa e se dirigiu à cama. Pediu desculpas pela falta de atenção e disse que estava cansada e precisava dormir. Dispensou o tal italiano paulista. Ele se surpreendeu, mas acatou a decisão. Beijo de boa noite, portas fechadas, ela seminua e um embrulho não mais lacrado em cima da mesa.
Na maioria das vezes uma caixa de morangos e um bom vinho caem melhor do que qualquer companhia para uma mulher.
Apanhou o vinho. Se olhou no espelho. Trocou a música.
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