Comodidade pré-fabricada.


Parem as máquinas!

As engrenagens andam enferrujadas, os trabalhadores não se movem mais com tanto afinco e a linha de produção se tornou obsoleta. Não têm mais fôlego e essa forma de criação massificada de sentimentos tem causado uma grande repulsa por parte da população. O Governo não sabe lidar com isso, e declara que a economia amorosa está em crise: grandes estoques encalhados nos porões, dentro de álbuns e fotografias em branco.

Os filmes não são mais revelados e as caixas de memória passam por uma reciclagem rápida. Os relógios são as mercadorias mais vendidas. As horas voam e todo mundo tem pressa de chegar a lugar nenhum. Em tempos de choque, o que é real quebra e desvaloriza a fantasia. Na fila do seguro-desemprego, os funcionários reclamam que com amor é mais caro. Achavam que o desgaste viria da tentativa amorosa e investiram errado na nova moeda de troca. Trocaram amor pela comodidade.

A revolução sentimental ainda não chegou. E mal sabem que a causa dessas dores de cabeça e tonturas vem do excesso de trabalho físico. Usam o corpo e se esquecem na solidão. Se perdem nas ruelas que levam às fábricas. Pintam as roupas com uniformes e se relacionam todos do mesmo jeito. Poluem o próprio céu com tinta cinza. Fica mais difícil de segurar a respiração e a qualidade de vida diminui. Você já não consegue mais distinguir o homem de lata das máquinas – e há quem diga que os robôs andam mais tristonhos. Ainda que seja óleo que escapa pelos olhos, eles sentem alguma coisa. Enquanto isso, nós continuamos andando por aí com buracos negros no lugar da visão. Sentamos em sofás acolchoados e fazemos o movimento rotineiro de levantar o braço e passar por trás de quem senta conosco. Sem boa noite ou expressão de carinho. Porque o mundo anda em crise e com amor é mais caro, já disse.

 

Os desordeiros são rebeldes da causa. Pregam o amor livre nas portas e são presos por atentado ao pudor da comodidade. Gritam alto nas praças e avenidas e se escondem em becos. Escorrem pelas ruas quando a chuva fina cai. Descem pelos bueiros com lágrimas e corações palpitantes. Circulam pelo mercado negro de emoções. Se calam diante das negociações. E continuam vendo os operários vendendo as almas em troca de calmaria. E os relógios controlam a rotina. No lugar dos beijos, os lábios carregam fuligem. Não se queimam e não se arriscam a se queimar. Piratearam os sentidos para que não sentissem nada. Uma ou duas doses e dá defeito. O amor se tornou artigo guardado em alguma loja de antiguidades. Só vai voltar a ser artigo da moda quando a economia estabilizar. Ou se dissipar. Ou quando os rebeldes ganharem a causa. Quando a gente levantar do sofá e gritar bem alto. Quando a gente dispensar o elevador e correr pela escada de incêndio. Quando a gente fizer barulho e voltar a suar. Quando os braços saírem da posição de descanso da poltrona e envolverem outras pessoas de verdade. Quando a fuligem der lugar à saliva. Quando a gente fizer a nossa própria revolução.

Por enquanto, o amor é vintage. E pela lei da oferta e procura é caro demais. Ninguém consegue pagar.

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