Maria.


Ô, mãe. A gente dá tanta volta no mundo pra quebrar a cara e dizer que vocês estavam certos. Eu lembro como se fosse hoje aquele dia em que eu te contei que meu sonho era virar ator e que eu tava indo embora em busca do meu sonho. Você chorou, lembra? Mas ao contrário do que eu pensava você me ajudou a fazer a mala e me deu as economias que a senhora tinha. Abriu a porta lá de casa com o coração na mão, abriu minha mala e o colocou lá dentro. Era pra eu levar um pedaço de você comigo. O mais especial.

“Vai e segue teu sonho, fio. Vai atrás do que faz ocê feliz. Vai e não olha pra trás. Espera o que há de vir. Meu Deus sabe o que faz e eu conheço esse teu coraçãozinho de sonhador, uai. Chora o que não foi, não. O que há de vir tem muito força, meu fio. Entrega e confia.”

Foram tantas portas fechadas, tanta gente rindo da minha cara, do meu sotaque, dos meus sonhos. Eu pensei em desistir tantas vezes, ô mãe. Mas você tava lá comigo. Até naquele dia que eu quase morri de fome no frio e na chuva, você tava lá comigo. E tenho certeza que aquela senhorinha que me ajudou foi um anjo que atendeu alguma reza tua, minha mãe. Você me ensinou tanto, sabia? Foi por causa daquela surra quando eu peguei dinheiro da sua bolsa que eu aprendi a sofrer com honestidade. Foi por causa do seu orgulho quando eu tirava nota boa na escola que eu aprendi a me orgulhar de mim mesmo. Minha escola foi lá em casa mãe. Aprendi mais que matemática e essas coisas bobas que todo mundo sabe. Minha escola foi com dureza, sem muito mimo, com muita luta e muita força. Debaixo daquele sol quente eu via que a senhora não desistia fácil. Meu choro e dos irmãos era o que te fazia levantar, eu sei. Minha escola era teu rosto. Tuas expressões de dureza que se transformavam em sorriso quando a gente mostrava que era feliz tendo pouco. A gente era feliz tendo muito de você, minha rainha.

“Não deixe ninguém dizer que ocê não consegue ser feliz meu fo. Tá vendo aquela plantinha ali no quintal? Ela não pode se mexer, não consegue levantar. Por isso que eu vou lá e rego todo santo dia. Ela tá bonita que só. Ocê é como aquela plantinha. Eu te ajudei enquanto eu pude e vou sempre ajudar ocê, meu fio. A diferença é que ocê tem pernas pra escolher um caminho que não depende da minha vontade. Depende da tua força. Vai cair muito água, muita pedra, muita quentura e muita gente enganosa, meu fio. Vai ter cobra, urubu, erva daninha e toda aquelas pragas que a gente vê por aí. Mas ocê tem que ser forte. Olha pra frente e segue teu destino. Tua felicidade depende de você e de quem você é. Não esquece do teu valor, meu fio…”

Foi dureza, mãe. Mas eu consegui. Batalhei e cheguei aqui. Aquele pessoal queria me levar embora das minhas raízes, mas eu relutei. Acabaram por mudar meu nome, mudaram minha cara e meu cabelo, me falaram quem eu devia ser. E eu fraquejei, minha mãe. Foi na época que eu mandei a última carta pr’ocê. Na época que eu tava virando bacana e importante. Você teria orgulho de mim. Capa de revista, galã de novela, namorada bonita, uma formosura só. Foi quando me proibiram de falar assim. Eu falei até outras línguas, mãe. Ninguém mais ria de mim. Ninguém mais ria comigo. Todo mundo tava ali pra fazer o que eu queria. Mas tava faltando alguma coisa em mim, mãe. Eu esqueci o endereço de casa ou eles fizeram questão de fazer a senhora sumir. Nunca mais recebi nenhuma carta sua, mainha. Até hoje de manhã quando eu descobri milhares de cartas na lixeira do escritório. Nem a formosura da namorada, nem o assessor cretino, nem essa vida prestavam.

“Eu te disse, meu fio. O que há de vir tem muita força. É como a correnteza quando a represa rompe. Ocê não soube controlar, se deixou levar. A água apagou tua história, tuas verdade, apagou quem ocê era de verdade. Eu fiquei feliz por ocê, mas depois a tristeza bateu forte no peito de jeito que enfermidade nenhuma bateu um dia. Eu fui definhando, os meninos tentaram falar com ocê. Mas um tal de “ceçô” e uma menina que era uma formosura só não deixaram eles chegar perto d’ocê. Eu tentei te resgatar, meu fio. Tentei te dar um abraço e te dizer que ocê tinha conseguido teu sonho. Mas parece que eu me enganei. Uma vida assim não pode ser sonho pra ninguém. Ocê deve ter jogado fora a mala que eu te dei quando ocê foi embora. E junto deve ter esquecido meu coração lá dentro. Sem ele num dá pr’eu viver, meu fio. Eu só queria me despedir e pedir pr’ocê tentar lembrar quem é. Lembra da tua força, dos teus pé no chão, do calor na cabeça que ocê gostava. Lembra da tua família, da tua felicidade. Lembra d’ocê.”

Ô mãe, eu sinto tanta a sua falta. Eu não fui capaz de enxergar que o futuro pertence aos fortes. E agora que eu me lembrei de tudo, não tem porto que me leve pr’onde a senhora está. Não tem avião mais rápido do mundo ou trem-bala que me leve até aí. Eu perdi seu funeral, minha mãe. Mas é que eu só consegui me achar no meio dessas fantasias todas quando eu li essa sua carta. O que há de vir tem muita força, mas eu tô chorando o que não foi, minha mãe. Vou fazer uma reza na capelinha lá de casa pra senhora e tentar consertar um pouco do que eu perdi pelo caminho. Vou acender uma vela e pedir pra Deus te receber bem, minha mãe. E se sentir faltar alguma coisa, diz pra Deus que teu coração tá comigo. E eu só devolvo quando for pra te encontrar de novo.

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