E foi assim que eu esqueci a sua voz


É só sentir cheiro de amaciante e lembro de você. Quem diria que uma história guardada há tanto tempo, velha e mofada, teria cheiro de Comfort.

Você era tão pouco hábil com as tarefas domésticas que enchia o balde de amaciante, culminando em manchas azuis nas camisetas brancas e estampas tie-dye nas pretas.

É só fechar os olhos enquanto o cheiro de lavanda invade minhas narinas e consigo lembrar perfeitamente do seu quarto sem cama, com o colchão de solteiro jogado em um canto, esperando que a gente se rendesse e se jogasse também.

Lembro do seu chuveiro, dos azulejos azuis e da pia vazia. Lembro do prédio e do porteiro, e daquela vez em que fiz uma surpresa e cheguei sem avisar. Lembro de como éramos felizes, antes do depois e depois do nada.

Minha vida não passava de um enorme vazio quando nos encontramos. Havia bolas de feno rolando pelo cenário e aquela maldita música de faroeste, anunciando um marasmo tão grande quanto a falta que você fazia, sem que eu soubesse que era você o que faltava.

Aí esbarramos e o assobio ao estilo filme de cowboy parou, dando lugar ao som melódico dos romances.

Eu sabia tão pouco sobre o amor. Embora o tenha recebido em excesso dos meus pais, o que é que uma menina sabe de amor?

E assim aprendemos juntos, amando na cama e fora dela, levando o amor pra vida, pro status do falecido Orkut, para as declarações rasgadas, para os longos telefonemas, para os encontros tão breves e tão intensos.

Eu te amei até deixar de me amar, o que me faz crer que amei errado, torto e mais do que você merecia.

Você? Bem, você me amou o quanto pode, e ambos sabemos como você podia pouco.

De faroeste para romance, de romance para drama. E foi assim que eu esqueci a sua voz, o perfume dos seus cabelos castanhos, o tamanho da sua mão, a sua cara linda e cínica que aos poucos deixou de me amar.

Não era questão de ego, era questão de sobrevivência.

Eu me agarrei ao Comfort entranhado nas roupas, arranhei o azulejo do seu banheiro, deixei seu chuveiro ligado dias e noites, até que esses detalhes tão banais crescessem mais do que qualquer lembrança.

Eu sei que te amei. Eu sei que por algum tempo fomos estupidamente felizes, mas sei disso como sei que o céu é azul, com uma explicação lógica e pouco detalhada, sem nenhuma poesia.

Quando olho pra fora do quarto com colchão de solteiro e sem cama, quando tento ver além daquela pia vazia, me sinto a espectadora de um filme. É quase surpreendente que tenhamos estrelado juntos aquela história.

Sim, lembro de você quando sinto cheiro de amaciante ou quando vejo algum comercial anunciando roupas mais perfumadas, mas é uma lembrança cada vez mais fragmentada.

Ao contrário do que acontece quando a gente usa Comfort, há lembranças que precisei diluir.

Flavia1

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