Como ela sempre foi


Desliza pelas bordas da banheira. Se agarra ao que não era dela. Sai sem toalha pra não glamurizar a cena. Se vê nua em pelo e mesmo assim a vergonha era outra. Abre as janelas da sala e observa o que ele faz no banho. Bota a água pra ferver e sai desfilando pelo décimo andar do apartamento. Merece mais que isso. Sobe num dos saltos novos e vê o mundo de cima. 15 centímetros a mais de lucidez. Pergunta se está tudo bem e se ele quer alguma bebida. Recusa. Como sempre. Rejeição até num gole rápido. Ela bota conhaque pra dois e brinda a sós. Nua. De Salto. Resolve maquiar-se. Borra os olhos a cada lágrima. Os cabelos ainda molhados da banheira. Averigua se as olheiras aparecem ou se parecem levemente forçadas de fuligem como ela pretende que sejam.  Abaixa a fotografia dos pais e desliga o celular. Desfila mais um pouco pelo décimo andar. Maquiada. Nua. De Salto. Não gosta de barulho, mas o silêncio da casa já a perturba há tempos. Mira o espelho e vê que ainda tem alguns poucos pelos pubianos avermelhados. Sorri com um gosto depravado antes de acender um dos cigarros dele. Ele nunca sentiria a falta do vermelho dela. Sufoca um pouco e deixa sair o ar. Em estado efervescente. Evaporando. A chaleira começa a soltar algum vapor e o chiado é tímido. Como o dela. Apesar dos fios de um vermelho chamativo. O gosto do conhaque é forte e desce rasgando sua garganta. Como ele. Pensa se deveria usar um vestido pra ocasião da despedida, mas prefere se agarrar à mesa de jantar e desfilar no alto. Os janelões da sala não têm impressões digitais. Como eles dois. Sem vestígios. Sem fumaça. Sem conhaque. De salto. Nua. Maquiada.

Apita a chaleira e ele já não consegue mais se concentrar na própria distração. Corre para a cozinha e desliga o fogão. No mesmo momento em que ela se desliga dele. Corre os olhos pela sala. Observa o janelão da sala e as marcas de dedos visíveis no vidro. A garrafa aberta. O conhaque esparramado. As marcas de salto na madeira da mesa. Um baque surdo. Era tudo o que ela tinha sido durante esse tempo todo. Omitida pelo chiado de uma chaleira. Ele não ouviu nada. Mas essa era, certamente, a primeira vez em que ele a via. Sem vestígios. Sem fumaça. Sem conhaque. Como eles dois. De salto. Nua. Maquiada. Do alto do décimo andar. Em uma pose caricata no chão. Envolta num vermelho escarlate. Como ela era. E podia jurar que a boca imóvel dela esboçava um sorriso malicioso enquanto os pedestres se chocavam com a queda voluntária.

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