Às vezes, eu me canso de mim mesma


[Você pode ler este texto ao som de Kitchen Door]

Sabe quando as palavras somem, dindi? Tem sido difícil escrever por mim e pra mim desde que eu comecei a trabalhar com artigos e descrições e projetos para os outros. Há algo de estranho nisso tudo – é como se, quando eu me sentasse para me botar em letras, eu não conseguisse me desvencilhar dos anúncios e tutoriais e das técnicas de SEO. Não estou reclamando, não estou mesmo. É um trabalho que me ensina muito todos os dias. Esse parágrafo inteiro é apenas uma constatação.

(Você já pensou em como é se descrever em keywords? E como seria se você estivesse à venda em um e-commerce qualquer? Eu acho que a minha descrição de produto seria algo como: “Item um pouco danificado; possui rachaduras e ligeiras avarias por conta de uso indevido. Não funciona bem antes das dez de manhã e consome uma quantidade ridícula de Taurina porque viciou em energético na época da faculdade. Tem fenótipo de japonesa, mas não tem japonês na família – o olho puxado é de índio, mesmo. Deu agora pra querer ser atriz, e esse é um trocadilho dos mais pobres. Adora bater um tambor, gosta de esoterismo e tem duas tatuagens. Para distraí-la, jogue um cachorro ou um pacote de balas de goma em seu colo. Tem um senso de humor duvidoso. Não vale nada”. Achei verídico. Engraçadinho, até.)

Antes de começar esse texto aqui, eu tentei fazer outro. Ele ficou mais ou menos assim: Minha alma parece uma Matrioska. Há camadas e camadas e camadas de verniz e madeira e cores vibrantes que escondem a minha pequenez. Não é sempre que eu me deixo ser desnudada assim. O teatro opera milagres, embora não seja um amante dos mais calmos. Ele vem sorrateiro e me crava as garras – assim mesmo, brutal assim. Ele me obriga a sair do abrigo, na verdade – e frequentemente isso dói. Não lembro bem de um dia em que não tenha doído. Mas ser meio masoquista também é parte de mim (e eu aceitei isso, e eu gostei).

Não consegui ir além disso – juro. Não deu nem 100 palavras. Acho que estou infinitamente esgotada de falar de mim, mas também não sei sobre o que escrever. Sabe quando você tem a impressão de que todas as histórias já foram escritas e todas as narrativas já tiveram o tempo delas e tudo o que sobrou é sombra das árvores alheias? Fernando Pessoa falou essa última parte aqui e eu duvido muito que o contexto seja esse, mas me senti inclinada a usar esse trecho (que acho infinitamente lindo por motivos de: não sei. Só acho). Tudo é masturbação da mesma ideia, tudo é repetição. É interpretação do conceito feito em cima do conceito de outrem. Pensando assim, acho que a originalidade é uma ilusão das mais arrogantes. Tenho me sentido infinitamente arrogante por querer sair do óbvio, e me sentido infinitamente diminuta por não conseguir.

Você já teve tudo na mão e sentiu medo? Pergunto isso, dindi, porque tenho a impressão de que você lida muito melhor com os monstros que estão embaixo da sua cama do que eu. Eu às vezes durmo com a janela escancarada para o quarto não ficar na penumbra, e eu já não sou das mais novinhas, não. Ano que vem já começo no Renew – ou não. Sei lá. Não sei bem o que eu acho sobre envelhecer. O que eu sei, inevitavelmente sei, é que velhice vende. Tenho esbarrado em muitas promoções e promessas de juventude eterna. Tenho, aliás, encontrado ofertas de trabalho para escrever sobre isso. Não vou. O dinheiro é bom, não minto, mas dormir bem é melhor. Eu não durmo quase nada, já, e isso eu não quero piorar.

(Imagina que incrível um mundo onde todo mundo trabalhasse por amor e só escrevesse e falasse sobre o que quer e sobre o que sente e não ficasse reproduzindo a importância de comprar, virar, mudar, fazer? Imagina que incrível um mundo onde isso não fosse tão forte em nosso imaginário e a gente não quisesse tanto fazer parte de algo que, na verdade, não faz parte da gente? Acho que ando me questionando até onde o que me compõe é verdadeiramente meu. Acho que descobri, não faz muito tempo, que nada do que eu achava que havia nascido comigo realmente o fez. A gente é produto mesmo, no final das contas – e sem direito a descrição bonitinha. Quanto será que a gente vale?)

Hoje viro a noite escrevendo, possivelmente. Essa não é uma crítica, tampouco um lamento. É uma constatação. O futuro não nos pertence, dindi; nós somos joguetes da natureza. Essa última expressão não é minha, é do Hamlet. Nada é meu, só eu – e eu sinceramente estou cansada de falar de mim.

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