Amanda


Era Setembro, mês em que todas as memórias me levavam para uma única tarde de primavera fresca e dourada pelo sol suave que se punha na casa de campo. Dois amigos de infância, agora dois adultos com compromissos e responsabilidades, celebrando a vida num reencontro animado em que falávamos sobre tudo o que nos tinha acontecido desde sempre.

Eu tinha deixado de ser aquele moleque que escalava as árvores da rua, que apertava a campainha da casa dos vizinhos e fugia, que sempre roubava nos jogos de futebol ou em qualquer jogo porque não admitia perder. Eu – moldado pelo tempo e pelas razões que me trouxeram até aqui  – já não tinha mais problemas em descrever a quem perguntasse sobre os pedaços soltos da minha vida. Um homem de sucesso, com aparentemente tudo o que sempre sonhou em mãos, não enfrentava nenhum problema ou crise.

Lucas, meu amigo de infância, se divertia com as lembranças das traquinagens que tínhamos aprontado naquela casa de campo anos atrás. No meio de tantas risadas e perguntas saudosistas, perguntou-me se ainda possuía a foto de um certo pôr-do-sol em que montamos no velho Labrador da família e brincamos de corrida. Abri a carteira para mostrar-lhe a foto e, com o passar das fotos, uma foto dobrada e de aspecto intocado caiu.

Lucas pegou a foto do chão e a abriu. Olhou primeiro para a foto e pareceu encabulado. A foto revelava um jovem eu de mãos dadas com uma bela jovem de cabelos vermelhos e raivosos, com seus cachos selvagens. Suas sardas contrastavam com o preto dos meus cabelos e nossas mãos atadas chamavam mais a atenção do que o sorriso dos nossos rostos de anjo. Lucas, curioso, fez a pergunta que eu mais desejava que ele não fizesse. “Quem é essa moça, Felipe ?”.

I ) Essa moça é a razão pela qual eu me tornei o que eu sou hoje. Foi a razão das noites sem dormir, dos telefonemas embriagados, do gasto mensal com a cota de flores e chocolates. Essa moça foi o meu tormento…

II) Essa linda mulher, de pele branca e de sardas enferrujadas, de olhos azuis feito um mar revolto, de atitudes infundadas e fracassadas… Essa mulher imaginária…

III ) Essa mulher foi a pessoa que eu mais detestei em vida. Ela me fez perder o emprego, perder os meus amigos, perder a minha cidade natal… Me fez perder a cabeça e o tempo de encontrá-la…

IV) Foi a mãe dos filhos que eu não tive, a minha promessa de envelhecimento mútuo, o meu sonho mais duradouro, o meu cobertor em noites de frio…

V ) Foi o meu grito mais furioso, meu bater de portas mais irritado, meu problema constante.

VI) Foi meu banho mais demorado, minha valsa mais esticada, minha risada mais cheia de dentes e reflexos.

VII) Foi a minha invenção mais medíocre, o meu “eu te amo” mais falso, a falta de tempero e a maior perda de tempo da minha vida.

VIII) Foi quem me disse as frases de efeito mais memoráveis, quem me julgou por ser anti-ético e moldou meu caráter, foi a moradora de Copacabana mais charmosa que qualquer outra.

IX) Foi a companheira de leituras da minha mãe, a canção de ninar dos meus sobrinhos, o apoio preferido de minha avó. Foi um retrato na estante, uma carta que demorou a chegar, a aceitação que demorei a recusar…

X) Foi um beijo de despedida, uma mão de adeus estendida, uma última ferida que nunca cicatrizou…

E enquanto Lucas me olhava, eu pensava em pelo menos 10 formas de dizer a ele quem tinha sido Amanda. Não consegui escolher qual delas seria a melhor ou se todas elas juntas o fariam entender. Aliás, minto.

O grande problema seria que Lucas conheceria muito sobre Amanda, em todo o íntimo que ela poderia representar a mim. Ele teria a minha visão de quem ela era, eu seria sua projeção, seu espelho. Amanda tinha sido muito mais que tudo o que eu poderia dizê-lo. Ela estava escrita em mim visivelmente. Cada parte de mim sugeria um pouco do que ela foi.

Sem encontrar resposta certa ou em quantidade suficiente, optei por dizer a ele : “Foi só alguém que eu costumava conhecer”. E mal sabia ele que, se quisesse ou se tivesse conhecido Amanda, poderia saber quem ela era ao estudar a pessoa que me tornei.

-

Você também pode gostar desse assunto. Assista ao vídeo abaixo:

Comentários