A última vez que ela vai ligar pra você


[Você pode ler este texto ao som de Cannonball]

É dia lá fora. Ela boceja e coça o pescoço com o que sobrou das unhas (as quais, aliás, tem roído noite após noite, numa sinfonia de dentes, rangidos e resmungos). Estala os dedos. Passa a língua pelos lábios rachados. É quase Junho; o frio se aproxima. Ela pensa em festas, em casacos felpudos, em cortar frutas e enchê-las de chocolate quente – então pensa em esfregar chocolate naqueles lábios cheios como morangos suculentos e a garganta dela chega a fechar. Não é ânsia (quer dizer, talvez seja, mas é outro tipo de ânsia). Passa as mãos pelos braços, esquenta a pele fria. Pega o telefone. Os números quase que se digitam sozinhos. Ela espera.

Espera. Espera um pouco mais.

Balbucia: você vê, menina, eu sinto a sua falta. Dias mais, dias menos. Sua não-existência na minha vida volta e meia dói, volta e meia não faz nada. Hoje faz muita coisa. Ontem também fez. Sei que semana passada não pensei muito porque trabalhei demais e sabe, isso é uma vitória – não pensar. Não pensar que não faz muito ouvi aquela música do Damien Rice que você gostava tanto e talvez, apenas talvez tenha aplicado nossa história naquelas linhas e pensado que sim, ainda é difícil dizer o que está acontecendo. Ainda. Tanto tempo, Deus, quanto tempo faz? É culpa do cheiro do seu cabelo no meu travesseiro; entranhou mesmo, juro. Ficou por lá. Meses depois, umas vinte lavagens depois e tudo ainda fede a lavanda. Não fede. Não é verdade. Você me entendeu. Dias mais, dias menos. São pouco mais de quatro e meia da manhã, então posso dizer que é um dia mais. A mais. Não sei. Português não é o meu forte – eu sou do improviso, no fim das contas, não é assim que funciona? Saudade da sua altivez e dos seus pingos nos is.

Odiava as duas coisas. Sinto saudade mesmo assim.

Ela desliga. Levanta; parece uma gata preguiçosa. Arrasta os pés brancos de cera pelo chão de madeira e vai fazer um café. Acabou o pó. Abre a geladeira e pega uma lata de energético. Senta-se com as coxas bem separadas e olha para o relógio, majestoso na parede que precisa urgentemente de pintura. Ele parece deslocado de tudo, ela percebe enquanto enche o rabo de taurina. Quanta besteira eu penso quando olho para esse relógio. Ele tem bordas grossas e ponteiros rebuscados e não tiquetaqueia – parece que resmunga. É isso, resmunga: é um rangido velho, embrutecido. Um idoso numa casca jovem. Parece comigo, o filho da puta.

É quase noite lá fora. Ela chegou há pouco do dia e está cansada e ainda com as roupas que cheiram a desconhecidos do metrô lotado. Está exausta, mas a cabeça não dá trégua. Enquanto abre uma cerveja, concentra-se no barulho irritante do ente que conta os segundos que passam, ainda a observando de seu pedestal. Duas semanas e dois dias desde que ligou e recebeu como resposta a voz entediada da caixa postal. Não vou ligar mais, ela decide enquanto se serve de um copo estupidamente gelado. A cerveja desce vibrando, mas também tranca a sua garganta. Não sente ânsia. Serve-se de mais. Quando percebe, aguarda que alguém responda ao outro lado. Respira contra o bocal. Deixe a sua mensagem após o bipe.

Confessa: você viu que saiu uma matéria sobre o universo esses dias? Parece que ele sempre existiu. Não é engraçado isso? Não engraçado no sentido cômico, mas curioso, surreal até. Eu preciso saber onde as coisas começam e onde as coisas terminam, sempre foi desse jeito – ainda assim, eu tenho grandes dificuldades de entender finais. E os começos me intrigam também. Não falo só sobre a gente, não. Falo sobre tudo. Falo sobre mim. Esses dias eu vi Clube da Luta e é um filme incrível e a melhor adaptação de livro que eu já vi, mas o que importa é: eu vi Clube da Luta e eu pensei que deveria dizer que me sinto muito frustrada porque você é como se fosse a Marla, aquela personagem que eu observo com olhos ao mesmo tempo embrutecidos e fascinados e é quem rouba os holofotes e quem, ao mesmo tempo, finge que quer ficar no canto. Você tem um prazer engraçado, e dessa vez o sentido é cômico mesmo, em ver todo mundo bater a cara na parede tentando te seguir ou descobrir pra onde você vai. Não eu. Não agora e não mais. Tem dias. Hoje não é um dia desses. Amanhã talvez também não seja. Quem sabe, Marla, quem sabe? Não eu.

Ela sobe na cadeira e retira o relógio da parede. Arranca as pilhas e atira-as na lata do lixo. O som da passagem do tempo cessa. Ela sorri.

 

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