Quem me fez tão bruta?


[Você pode ler este texto ao som de Ciranda para Janaína]

As ondas batiam na embarcação de forma quase preguiçosa. Ela, sentada na proa, tinha os olhos fechados. O mar estava calmo – pateticamente calmo, na verdade, especialmente para algo que podia engoli-la num piscar de olhos.

Por fora e ao redor, tranquilidade. Por dentro, águas revoltas e trevas abissais. Toda a sorte de criaturas que, esperava ela, jamais veriam a luz do dia. Por dentro, o oceano se sacudia (estaria em prantos?), e a voz dela, num sussurro, implorava: Iemanjá, odociaba, rainha. Me leva de volta à costa, me deixa pisar na areia. Há tanto em mim que eu não entendo, Janaína, e eu queria que você me tomasse no colo, como a mãe zelosa que você é, e acalmasse a cadência nervosa desse maremoto interno, particular, abrupto.

Você sabe como acontece um maremoto? Meus conhecimentos de geografia são parcos, mãezinha, mas é algo assim: placas se chocam violentamente e fazem com que as ondas se tornem gigantescas e avancem contra o que estiver no caminho delas. Eu me sinto assim, volta e meia, entende? Meus pedaços se apertam juntos, desesperados por uma união qualquer, e então travam um embate dos mais agressivos. O resultado, oras, você já viu. Eu abro a boca e devoro tudo. Catástrofe encerrada, observo o quadro e me retraio. Nada volta ao normal.

Tudo piora no próximo choque.

Se mexeu, então. Manteve as pálpebras cerradas enquanto movimentava os braços em gestos longos e desajeitados, mas cheios de graça torta. Traduziu no corpo o furor de seu espírito inquieto, desesperada para botar para fora aquilo que jamais conseguia colocar em palavras. Engasgava, trocava os significados, terminava rosnando ou trocando sílabas e nunca, no final das contas, conseguia se fazer entender. Pensou algo como: que vejam o meu gingado horrendo e entendam que eu sou torpor e afronta, que eu não sei ficar parada. Mansidão é minha meta, mas eu sou toda desatino – e quando eu transpareço suavidade, eu só estou esperando o momento em que algo vai explodir no meu peito e me fazer animalesca na minha ânsia de afundar navios inteiros. Quem me fez tão bruta?

Interrompeu os gestos ao sentir olhos queimando em sua nuca. Abriu os olhos. Avistou uma leve névoa no horizonte, e um vento gelado atravessou seu corpinho pequeno e roliço. Apertou-se melhor no casaqueto, deitou o rosto no próprio ombro e sentiu, por um momento, que tinha braços ao seu redor. Braços que não perguntavam, apenas entendiam. Braços que a traziam de volta. Aceitou o afago da brisa gelada e cantou baixinho, sereiando, fugindo do escuro dos confins porque sabia, Deus, como sabia – se viesse a afundar, morreria só, e lá no fundo.

Juliana

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