Quando você foi embora


[Você pode ler este texto ao som desta versão de Call Your Girlfriend]

A insistência pode ser mais dolorosa do que o fato em si, sabia? Porque eu, ah, eu tenho dessa coisa minha, só minha mesmo, de me apegar a cada rejeição e criar como se fosse semente no algodão. Com afeto e com todo cuidado doentio de quem não consegue se desprender dum mundo-nada-ideal em que você não me contou nada, e eu finjo saber em silêncio. Finjo saber que você vai embora daqui a pouco, finjo saber que você vai sentar comigo numa praça movimentada às oito da noite duma terça-feira friorenta pra cravar sete graus Celsius de despejo no peito. Finjo que sei prever o futuro e pode ser que eu esteja certo e que isso vá acontecer, mas o fato da previsão ser duvidosa, ainda que numa margem de erro pequena, me conforta. Me conforta porque você ainda não bateu o martelo, não me chamou pra falar, não decretou alforria sentimental e nem se desprendeu de mim. E enquanto eu tenho isso, eu finjo, finjo, finjo e suplico pra mim mesmo que tá tudo bem.

E chega um dia em que você me conta que conheceu alguém novo.

Nesse dia não teve porta destrancada e eu nem me lembrei de acender a luz do corredor. Nesse dia bateram lá em casa pra ver se tinha alguém e já não tinha. Apaguei a luz pra ver se você caía no meio do caminho tentando me achar, pra ver se você se machucava ou se cortava no chapisco da varanda, pra te causar alguma dor física que compensasse. Ah, porque a gente quer sempre machucar o outro de alguma forma quando a gente sente dor sozinho e quando nem tem como remediar direito. Quer que o outro se sinta mal e se sinta mesmo, sem dó nem piedade. A gente quer deslocar o lugar de vítima pra outra pessoa que não seja a gente porque a gente não se basta mais de tanta angústia que já cabe aqui dentro.

Eu rego minhas mágoas diariamente. Só que essa tem lugar especial. Como num ritual pré-estabelecido, despejo água salgada direto da fonte sobre ela. Que se alimente de mim e de você e de toda essa dor comprimida que não dá pra engolir. Despejo o vidro de remédios no ralo da pia e desço com eles pra viver nessa condição-placebo que me obriga a te acusar. E te despejo de acusações. Te acuso de ainda estar bem. Acuso e recuo e queria que você sentisse o gume pontiagudo espetando, raspando a ferida pra não infeccionar, pra deixar os pontos abertos, expostos pra drenar você. Recuso a cura. Me recuso a aceitar que você tenha passado por isso como se nunca tivesse visto metade do que eu vi de sofrimento e solidão. Abuso e peço pena de tortura – porque o que eu sinto não pode pegar prisão perpétua e o corredor da morte pra gente carece de pânico e de dor pra você. Exijo tortura em histeria. Numa histeria tão silenciosa quanto a dor de ver quem você amou indo embora de mãos dadas com alguém, sem nem sentir o peso da sua perda. Numa histeria que observa o calendário e confessa que os meses de janeiro a dezembro tiveram carinho, conforto e passaram sem marcas pra você enquanto eu via cortes cada vez mais fundos numa pele inchada e marcada por malas nunca desfeitas debaixo dos olhos.

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