Sobre o que tenho feito da vida


[audio http://dl.dropbox.com/u/104739227/bj%C3%B6rk%20-%20all%20is%20full%20of%20love.mp3 |titles=”Bjork – All is full of love”]

– E o que você tem feito da vida?

– Nada.

– Como assim “nada”? Não é possível. Todo mundo faz alguma coisa da vida. Você não tá trabalhando naquele seu novo projeto milionário que ia mudar o mundo e a forma com que o mundo usaria a tecnologia e tudo o mais?

– Sim. Mas isso não significa que eu esteja fazendo alguma coisa “da” vida. A vida tá aí e eu pareço estar cada vez mais longe de fazer alguma coisa dela. É como se eu fosse mais um transeunte esbarrando aos solavancos com outras pessoas que também não fazem nada da vida. Nada que realmente acenda aquele sensor de que a vida começou e de que você tá no meio de um livro vivendo a tal aventura que foi criada pra você viver até o fim, mesmo com os giros da história e os capítulos que enrolam o leitor. Aquela coisa que te mostra que você é protagonista de alguma coisa e tem uma coisa bacana pra levar adiante da forma que quiser.

– Mas… Isso não seria sonhar demais? Quer dizer… Você é um cara ótimo. As pessoas te adoram. O seu trabalho é realmente importante e pode realmente mudar o mundo. E você pode realmente fazer coisas que vão ser reconhecidas dentro de algum tempo e fazer com que todo mundo fique realmente orgulhoso de você… Seus pais, sua namorada, seus amigos. Eu ficaria orgulhosa de você também, acho.

– Nah, tudo bem. Mas quando é que eu vou parar de viver a vida dos outros e pros outros? Essa não é a vida que eu sempre quis e, pra dizer a verdade, eu nem sei qual é a vida que eu gostaria de ter. Esse não é o amor que eu gostaria de ter. Ela gosta de mim e tudo o mais, mas quando é que eu vou amar alguém de todo coração e aquela baboseira toda até cair de quatro por alguém num estacionamento antigo com flores na mão e o peito rangendo de nervoso? Você nunca quis se sentir especial? Não é como se o meu trabalho não fosse legal e tudo o mais. Mas eu sinto aquela vontade de me sentir infinito. E de realmente viver a minha vida por mim. E de realmente amar alguém de verdade – e não necessariamente ser amado. E de realmente ser feliz. Eu gostaria de ser feliz. Acho que você também gostaria.

– Mas nós todos somos especiais de alguma maneira. Esses mesmos transeuntes em quem você esbarra têm histórias que só conhece quem passa adiante da soleira da porta deles. A gente fica do lado de fora e pensa que o mundo seleciona as pessoas especiais como se selecionasse as estrelas. Esse senso de pertencimento nosso é meio falho. É vulnerável e faz a gente ter um monte de dúvidas sobre a vida, mesmo que ela seja estabilizada como a sua.

– Só que eu não quero uma vida estabilizada. Eu quero uma vida que seja minha e uma vida ótima. Eu quero poder ficar deitado na grama de algum jardim que não seja o meu e ficar contando as estrelas nos dedos – mesmo que isso me dê alguma verruga feia depois. Eu quero fazer as pessoas felizes, mas quero que eu seja realmente feliz com isso. E quero me sentir bem. Quero um monte de coisas e nem sei se eu mereço. Mas seria infeliz demais se pensasse que tudo isso é sonho e que sonho faz parte de uma utopia fantasiosa que só acontece nos livros. Pra dizer a verdade, eu acho que os livros são histórias de alguém que existe, mas que as pessoas dizem ser só histórias pra gente não acreditar muito nelas e continuar assim, vivendo alguma vida que não seja ótima e que não seja nossa.

– Agora imagine se todas essas pessoas nas ruas quisessem ser assim como você. Não haveria espaço pra tanta gente no meio do caos que se formaria. Essas imposições de estabilidade e de algumas regras foram feitas pra controle próprio. Liberdade sentimental acarretaria alguma guerra que a gente desconhece e as pessoas não teriam vidas ótimas e nem seria totalmente felizes. Elas acreditariam nos tais livros e quem é que contaria as histórias delas e faria com que outros se apaixonassem pelas histórias se a vida de todo mundo fosse assim?

– Não entendo o problema com isso. Eu acho que essas pessoas que contam as histórias são ótimas. E as pessoas que as vivem devem ser ótimas e felizes. E eu realmente espero que elas sejam felizes. Porque assim eu fico um pouco mais feliz também e não preciso mais conviver com a realidade de que a minha utopia fantasiosa nunca vai sair do livro que escrevo ou dos mundos que crio pra viver por aí. E é por isso que acho que eu tenho feito nada na vida. Não me considero especial e nem acho que eu sou um protagonista de algum desses livros que a gente lê por aí. Senão eu seria infinito. E infinito não é como eu me sinto. Definitivamente. Eu sou meio limitado. Meio rascunhado. Como se o meu escritor não tivesse certeza do que fazer com o meu final e tivesse arrancado algumas páginas do livro na metade e me deixado sem sentido e sem uma história ótima.

– Meu bem, alguém já disse que você tem uma imaginação fértil?

– Doutora, só porque as coisas acontecem nos meus mundos e na minha cabeça e nos meus períodos de sono e tudo mais, isso não significa que elas não possam ser reais. Mas paremos de falar de mim e de como eu ando fazendo nada da vida. E a senhora, o que tem feito da vida?

– Querido, depois dessa conversa, presumo que tenha feito nada. Nada mesmo.

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